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A saga do "talibã alemão"

Andreas Tzortzis13 de setembro de 2002

Há um ano, Murat Kurnaz deixou a cidade alemã de Bremen, em direção ao Paquistão. Desde janeiro último, está preso em Guantánamo, tido pelo governo norte-americano como guerrilheiro talibã.

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Alguns anos atrás, Murat Kurnaz ainda não usava barbaFoto: DW-World

Cartões postais brancos e impessoais e uma única carta são tudo o que Rabiye Kurnaz recebeu de seu filho, desde que este deixou a cidade de Bremen, no norte alemão, em outubro último. Segundo ela, Murat tinha a intenção de fazer uma "viagem espiritual, para entender melhor o alcorão". Dois meses depois de deixar a Alemanha, o jovem de 20 anos foi parar nas mãos de soldados norte-americanos nas proximidades do aeroporto de Karachi.

Os EUA acusam Murat Kurnaz de participação no combate em defesa da milícia talibã. Por causa disso, o jovem de origem turca nascido na Alemanha foi enviado ao Camp X-Ray, na baía de Guantánamo, na costa sul de Cuba. Ali, Kurnaz está entregue a um destino desconhecido, ao lado de 600 outros prisioneiros, todos privados de contato pessoal com suas famílias ou advogados. As condições em Guantánamo já foram criticadas duramente por diversas organizações de defesa dos direitos humanos.

O caso de Kurnaz é bastante confuso: embora o jovem tenha nascido e crescido na Alemanha, manteve a cidadania turca. Por isso, as autoridades alemãs pouco podem fazer por ele. O governo turco, por sua vez, mostrou pouco interesse no caso, segundo informações do advogado da família, Bernhard Docke. De acordo com investigações realizadas na Alemanha, o jovem era, no máximo, um aspirante a talibã e jamais um guerrilheiro ativo.

Prisioneiros sem direitos –

Rabiye Kurnaz compara o caso de seu filho com o do "talibã americano" da Califórnia, detido há alguns meses. "John Walker foi preso no meio da guerra no Afeganistão. O que os americanos fizeram com ele? Expuseram-no a um juiz. O que fizeram com Murat? Simplesmente o colocaram na prisão. Eu não consigo aqui reconhecer direitos humanos, você consegue?", questiona a mãe de Murat em Bremen.

A recusa dos EUA em considerar os "internos" de Guantánamo como prisioneiros de guerra faz com que os suspeitos potenciais – como o caso de Kurnaz – vejam feridos os seus direitos, garantidos pela Convenção de Genebra. Até mesmo os governos dos doze cidadãos da União Européia, presos em Guantánamo, só podem manter um contato limitado com seus compatriotas.

"O princípio básico da guerra contra o terrorismo é manter a soberania do direito. Deveríamos manter um patamar moral", observa Steven Everts, do Centro Londrino para Reforma Européia. "A decisão do governo norte-americano de não conceder a essas pessoas a proteção completa estabelecida pela Convenção de Genebra contraria exatamente esse pensamento, do qual a coalizão internacional contra o terrorismo trata", finaliza Everts.

Rabiye Kurnaz
Rabiye Kurnaz, mãe de Murnat, com uma foto do filhoFoto: DW-World

Pouco apoio – A mãe de Murat, Rabiye, escreveu uma carta ao ministro alemão das Relações Exteriores, Joschka Fischer. Este, no entanto, tem as mãos atadas, uma vez que Murat, embora nascido na Alemanha, é cidadão turco. Os telefonemas quase diários de Rabiye ao consulado da Turquia em Hanôver ou à embaixada do país em Berlim não levaram, até agora, a nada. "Eles sempre falam que vão fazer alguma coisa, mas não fizeram nada", fala Rabiye. Um porta-voz da embaixada turca em Berlim afirmou a DW-WORLD: "Sobre o caso, não temos muita informação."

Cães ferozes e escolas de alcorão –

Os pais de Murat vieram como trabalhadores para a Alemanha. O jovem de origem turca freqüentou escolas alemãs e tinha um círculo de amigos alemães. Apenas as visitas semanais à mesquita, em companhia de seu pai, o diferenciava de outros jovens de sua idade.

A mesquita que Murat freqüentou desde a infância é ligada à organização muçulmana Milli Görüs, mantida pelo Estado turco. Há cerca de dois anos, no entanto, Murat e seu amigo Selcuk Bilgin — com o qual Murat dividia a predileção por cães ferozes e pelo amor ao alcorão — passaram a freqüentar a mesquita árabe Abu Bakr, próxima à estação central de Bremen. "Ele dizia que tinham mais fé que a gente e por isso um significado maior", conta a mãe de Murat. A mesquita Abu Bakr, em Bremen, vem sendo observada pelo serviço secreto alemão.

No dia 3 de outubro de 2001, Rabiye encontrou a cama do filho vazia, tendo ouvido de amigos que Murat estaria a caminho do Paquistão. Segundo os resultados de investigações feitas por autoridades alemãs, Murat freqüentou várias escolas de ensinamentos do alcorão e tentou contactar guerrilheiros do talibã em Karachi. No entanto, em vez disso, acabou sendo entregue às autoridades norte-americanas. Investigadores em Bremen acreditam que Murat nunca teve contato real com membros da milícia talibã.

Guerra tradicional –

Funcionários da Cruz Vermelha visitaram Kurnaz três vezes em Guantánamo. O governo norte-americano permite a organizações internacionais visitas de inspeção para observar o estado de saúde e as condições a que os prisioneiros são submetidos, mas nega a elas o direito de passar essas informações às famílias dos detentos.

Todas as tentativas do advogado da família Kurnaz, Bernhard Docke, de falar com autoridades norte-americanas, fracassaram. "Eles nem ao menos nos dizem do que ele é acusado, nem qual é o estado legal dele", observa o advogado Docke. "É a postura dos EUA de, por razões de segurança, não falar de nada relacionado aos prisioneiros individualmente", esclarece a tenente Barbara Burfeind, porta-voz do Pentágono em Washington. "Este é um campo novo, não é uma guerra tradicional", resume Burfeind.

A insegurança é um peso para Rabiye Kurnaz. O último sinal de vida do filho foi um cartão postal enviado em fins de maio, quando Murat afirmava que estava bem de saúde. Mesmo assim, Rabiye insisite em continuar escrevendo. Suas cartas terminam sempre com as mesmas palavras: "Eu escrevo: Murat, você recebeu minhas cartas? Uma resposta, no entanto, nunca recebi". (sv)