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A tradição do êxodo na América Latina

22 de novembro de 2018

Região sempre foi continente de refugiados – fato reprimido na América do Sul, mas que muda agora, com os venezuelanos. Dramas surgidos da miséria permanente são alerta para o sul, avalia o colunista Alexander Busch.

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Sem camisa e de calças curtas, homem hondurenho está sentado no muro fronteiriço entre o México e os EUA em Tijuana, no México. Seus braços estão levantados. O muro é uma série de pilastras, sem concreto contínuo.
Homem hondurenho sentado no muro fronteiriço entre o México e os EUA em TijuanaFoto: picture-alliance/dpa/G. Bull

Em Tijuana, os refugiados da América Central na fronteira com os Estados Unidos parecem prenunciar uma escalada do drama migratório da região. Mas essa situação não é singular.

Nas últimas décadas, sempre houve êxodos de refugiados, ainda que não tenham acontecido sob a mesma cobertura midiática. Já meio século atrás, pessoas fugiam maciçamente de El Salvador, da Nicarágua e da Guatemala rumo ao norte. Nos Estados Unidos, encontraram trabalho como jardineiros, garçons, cozinheiros, auxiliares de colheita. Grande parte dos setores agrícola e de serviços americanos ficariam paralisados sem os imigrantes da América Central.

Por muito tempo, ninguém nos Estados Unidos ficou incomodado com isso – e muito menos nos países centro-americanos de origem. É que as chamadas remessas, ou transferências financeiras dos migrantes às famílias que ficaram, são um fator importante para as economias. Na América Central, esses envios já são maiores do que a soma dos investimentos diretos estrangeiros, da ajuda ao desenvolvimento e dos lucros com as exportações.

Em El Salvador e em Honduras, as remessas de dinheiro dos emigrantes para os países de origem totalizam 20% do Produto Interno Bruto, segundo cálculos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Os emigrados transferem anualmente um total de 80 bilhões de dólares para toda a América Latina, dizem estimativas do Banco Mundial. Dois terços do montante vêm dos Estados Unidos.

Dos 40 milhões de latino-americanos que emigraram desde os anos 1970, 25 milhões vêm da América Central. Isso equivale à metade da população atual dos seis países – Panamá, Costa Rica, Nicarágua, El Salvador, Honduras e Guatemala. Cerca de 90% dos refugiados se estabeleceram nos Estados Unidos – e, desde a virada do milênio, o fluxo de migrantes continua aumentando. Com a onda de refugiados venezuelanos, os países vizinhos estão tomando consciência do problema pela primeira vez na América do Sul.

O drama da migração na América Central é um mau presságio também para a América do Sul. Mostra que, também ali, os fluxos de refugiados deverão aumentar se os governos não conseguirem conter as crises econômicas, sociais e políticas. Um olhar sobre a América Central mostra como uma miséria econômica permanente levou a uma corrente de refugiados durante gerações.

A América Central é o abrigo dos pobres da América Latina. Juntos, os seis países produzem um PIB que equivale mais ou menos ao de Bangladesh. Enquanto o Panamá e a Costa Rica são países comparativamente estáveis do ponto de vista econômico e político no sul da região, a miséria piora no resto da América Central. Na Nicarágua, por exemplo, a renda per capita é de menos de 200 dólares por mês. Se for considerada a paridade do poder de compra, Honduras tem a mesma renda per capita do Sudão.

As causas da miséria são várias. Ao contrário de vários países africanos, a América Central é pobre em matérias-primas. Os principais produtos de exportação são café, açúcar e bananas. Acrescenta-se a isso um fracasso total crônico das elites políticas: já em 1904, o escritor americano William Sydney Porter cunhou num de seus romances o termo pejorativo "República de bananas" após uma viagem a Honduras.

Mas, onde há insegurança política, também não há atrativos para investidores estrangeiros. Indústrias de semicondutores, como na Costa Rica, onde também empresas alemãs, como a Bayer, estabeleceram seus centros regionais, são as poucas ilhas industriais na região até hoje.

Cada vez mais, a criminalidade se une à pobreza e à falta de perspectivas como causa do êxodo. Honduras e El Salvador são os países com as maiores taxas de assassinatos do mundo. A Guatemala ocupa a nona posição, segundo o escritório das Nações Unidas de combate às drogas e ao crime (UNODC). O número de vítimas de assassinatos ultrapassa o número de mortes ocorridas durante as guerras civis que aconteceram quando mercenários financiados pelos Estados Unidos combateram revolucionários de esquerda apoiados por Cuba.

Por isso, não é de se admirar que a atual corrente de refugiados começou na metrópole hondurenha San Pedro Sula, de um milhão de habitantes. Com 187 assassinatos para cada cem mil habitantes, o centro econômico do país foi a cidade mais perigosa do mundo durante anos. Desde então, o número caiu para 51 por cem mil, mas a cidade ainda consta entre os locais mais violentos do globo. A título de comparação, a Alemanha tem uma proporção de 0,85 mortes para cada cem mil habitantes.

Não é só desde Donald Trump que os Estados Unidos tentam conter o fluxo crescente vindo da América Central. Em 1996, o país endureceu as leis de migração e, desde o início dos anos 2000, começou a enviar centro-americanos de volta aos seus países de origem. Desde então, um milhão de centro-americanos e mexicanos foram deportados dos EUA.

Mas isso apenas piorou o problema da violência e da miséria econômica na América Central. Frequentemente, os deportados eram criminosos ou filhos de migrantes que cresceram nos EUA e não conseguiam se integrar no país de origem. As gangues juvenis, as temidas maras, surgiram inspiradas nas gangues americanas – e, atualmente, possuem o monopólio da violência em algumas áreas da América Central.

Close-up do jornalista alemão Alexander Busch com a mão no queixo
O jornalista Alexander Busch é colunista da DWFoto: Paulo Fridman

Os jovens lapidados pela violência costumavam ganhar dinheiro como mensageiros ou pequenos traficantes de cartéis mexicanos de drogas que transacionam especialmente cocaína da Colômbia pelo corredor centro-americano em direção ao norte. Mas isso não é mais suficiente para eles. "Os maras querem ascender e formar cartéis próprios", alerta Roy David Urtecho, ex-procurador-geral de Honduras.

O fortalecimento dos maras na América Central também ocorreu porque a elite política os protegeu, afirma José Miguel Cruz, diretor de pesquisas na Universidade Internacional da Flórida. Para os oligarcas no poder, o surgimento das gangues foi oportuno: elas serviam de auxiliares de campanha, milícia, extorsão de dinheiro em troca de proteção – trocando em miúdos, para manter a ordem vigente, na qual apenas um pequeno círculo de pessoas sempre teve as rédeas nas mãos. "Essas pessoas não têm interesse em fazer avançar suas sociedades, nem econômica nem politicamente", teme o professor de Ciências Políticas e Corrupção Michael Allison, da Universidade de Scranton (EUA).

Não é de se admirar, portanto, que todos os países da América Central constam entre as nações com as maiores taxas de corrupção e as maiores disparidades de renda do mundo. Uma classe média ampla e politicamente autoconfiante nunca pôde se estabelecer na região.

Com exceção da Venezuela, a situação na América do Sul ainda não é tão dramática. Mas isso pode mudar rapidamente, como mostra a América Central. Não parece que o atual fluxo de migrantes para os EUA vai mirrar tão cedo. E pode ser que Trump até o ache positivo – ainda que motivado apenas por táticas eleitorais.

Há mais de 25 anos, o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul do grupo editorial Handelsblatt (que publica o semanário Wirtschaftswoche e o diário Handelsblatt) e do jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em São Paulo e Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil. 

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