A violência sexual nas prisões da Coreia do Norte
24 de novembro de 2017"Minha vida estava nas mãos dele. Então eu disse e fiz tudo o que ele queria. O que mais eu deveria ter feito?", questiona uma agricultora norte-coreana que fugiu para a China e, em 2010, foi detida e enviada de volta à Coreia do Norte. O agente que a interrogou, durante a prisão preventiva na província de Hamgyong do Norte, questionou sobre suas relações sexuais com um homem chinês durante sua fuga. Ele queria saber todos os detalhes. Depois, ele agarrou a mulher e apalpou o corpo dela por baixo das roupas. Por fim, ele a estuprou várias vezes.
Esta é uma das muitas histórias que a ONG Human Rights Watch compilou. A organização de direitos humanos elabora um amplo relatório sobre violência contra a mulher nessa nação isolada: em casa ou no trabalho, mas também nos temidos campos penais e de trabalho forçados.
"Por causa da hierarquia, as mulheres correm sério risco de ser tornarem vítimas de violência e abusos", explica Heather Barr, pesquisadora responsável sobre direitos das mulheres na HRW. "Nós conversamos com ex-detentas e ex-altos funcionários do regime. Ambos os grupos relataram que estupro e outras formas de violência sexual contra prisioneiros não são considerados crimes graves, mesmo que sejam proibidos e punidos por lei."
Razões para o silêncio
As mulheres sofrem de forma silenciosa, cada uma por conta própria, e não contam a ninguém como foram assediadas fisicamente ou forçadas a terem relações sexuais com guardas ou interrogadores. Elas se envergonham e têm medo da estigmatização. E, de qualquer maneira, ninguém poderia ajudá-las.
De acordo com as investigações feitas pela HRW, violência física e assédio fazem parte do cotidiano das detentas tanto como o trabalho forçado ou a tortura. "Muitos abusos ocorrem até mesmo em público. Somente a violência sexual extrema costuma acontecer a portas fechadas e sem testemunhas. Ambos os lados – agressores e vítimas – mantêm frequentemente silêncio sobre o que aconteceu", conta.
O silêncio é mantido por uma boa razão. Embora seja possível apresentar queixa contra guardas ou interrogadores, as autoridades que recebem as reclamações fazem parte do sistema prisional. "Os agressores estão em vantagem e têm poder. Nenhuma das mulheres com as quais falamos teve a ideia de se defender ou culpar alguém publicamente, pois tinham muito medo das consequências. Para as vítimas, é praticamente impossível se defender", argumenta.
Ainda pior: se um caso surgir, a vítima será considerada culpada, e não o agressor. "Uma mulher testemunhou como uma presa teve relações sexuais com um guarda", conta Barr. "Ela falou sobre isso com outras pessoas e, num dado momento, os responsáveis da prisão ficaram sabendo. Em consequência, ela foi punida, transferida para outro setor da cadeia e obrigada a fazer um trabalho muito mais pesado do que antes."
A outra mulher também foi punida. Apenas para o guarda não houve nenhuma consequência. "Depois que as detentas souberam como os superiores lidaram com o caso, elas simplesmente ignoravam quando viam tais abusos e se recusavam a falar sobre o assunto", complementa.
Quebra de tabu
Oito mulheres ousaram romper o silêncio e contaram suas histórias para ativistas da HRW. Todas conseguiram fugir do país e moram atualmente na Coreia do Sul, em segurança. Mesmo assim, não foi fácil fazê-las falar sobre o assunto, explica Barr.
"Essas mulheres vivenciaram muita angústia e sofrimento e estão altamente traumatizadas. Por causa de suas experiências dolorosas, muitas vezes elas têm dificuldades para confiar nas pessoas. Elas relutam em falar sobre o assunto e, assim, ter que, mais uma vez, passar por tudo. Algumas também têm dificuldades de se lembrar de todos os detalhes, e isso está também relacionado com o trauma", diz Barr.
As razões pelas quais as mulheres foram enviadas aos campos penais são parecidas, mesmo que as histórias não possam ser verificadas de forma independente. Mesmo pequenas supostas transgressões são suficientes para serem presas. "Algumas cumpriram pena por 'crimes econômicos', por exemplo porque compraram ilegalmente alimentos caros, como frutos do mar, que estão sob controle do governo", acrescenta Barr. Além disso, muitas tentam fugir para a China, são apanhadas e entregues às autoridades norte-coreanas.
Sem consequências
As condições e o sofrimento diário nessas instalações foram relatadas há alguns anos à comunidade internacional. Em fevereiro de 2014, uma comissão das Nações Unidas formada por três membros e presidida pelo juiz australiano Michael Kirby apresentou um relatório com centenas de páginas sobre a situação dos direitos humanos na Coreia do Norte.
Foi a primeira vez que ocorreu uma investigação em grande escala. Os representantes da ONU foram, porém, não puderam entrar no país. Em vez disso, a comissão questionou cerca de 300 testemunhas em várias cidades do mundo ao longo de meses. No final, chegou a um quadro chocante da situação.
"Uma testemunha tinha a tarefa de eliminar os corpos de prisioneiros que morreram de fome", disse Kirby, na época, em entrevista à DW. "Mas ele não tinha o equipamento necessário para isso. Então, ele queimou os corpos numa grande cuba, e as cinzas e as partes restantes dos corpos foram usadas como fertilizante em campos próximos. Ele dizia que era um bom adubo."
Uma mulher relatou como teve que segurar seu bebê de cabeça para baixo num balde cheio de água até ele se afogar. Ela também havia fugido para a China. Antes de ser capturada, havia engravidado de um homem chinês.
O relatório mostrou situações dramáticas e chocantes, mas, desde sua publicação, as condições nas prisões e campos de trabalho forçados aparentemente não mudaram. Barr pede que a comunidade internacional continue reunindo evidências de abusos dos direitos humanos na Coreia da Norte e busque maneiras de, algum dia, levar os responsáveis à Justiça.
Sozinha com seus demônios
As mulheres entrevistadas pela HRW para o relatório deixaram a Coreia do Norte para trás, mas não suas experiências e memórias. Assim que chegam à Coreia do Sul, elas passam alguns meses num centro de apoio para refugiados norte-coreanos.
"Nessa instituição, administrada pelo governo sul-coreano, elas são avaliadas física e psicologicamente e recebem aconselhamento. Além disso, obtêm dicas para o cotidiano, como, por exemplo, como usar um celular ou operar caixas eletrônicos", conta Barr.
Mesmo depois há oportunidade de se buscar ajuda psicológica, por exemplo em ONGs ou igrejas. "No entanto, é preciso dizer que o receio de fazer um tratamento psicológico é muito grande na Coreia do Sul – por medo de serem estigmatizadas. Por essa razão, muitas vítimas acabam não procurando ajuda ou fazem isso em segredo", acrescenta.
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