Acordo nuclear EUA e Índia: dois coelhos e uma cajadada
3 de março de 2006Por ocasião de sua primeira visita à Índia, o presidente norte-americano, George W. Bush, assinou em Nova Déli na quinta-feira (02/03), juntamente com o premiê indiano Manmohan Singh, um tratado de cooperação nuclear para uso civil, justificando-o com a necessidade indiana de independência energética.
A ratificação do tratado pelo Congresso americano possibilitará à Índia a importação de tecnologia e material nuclear para novas usinas atômicas. O tratado finaliza também mais de 30 anos de boicote americano ao programa nuclear indiano, após os primeiros testes atômicos realizados em maio de 1974.
Após ter assinalado como "histórico" o tratado assinado em Nova Déli, Bush comentou em Hiderabad, no segundo dia de sua visita, que "o dia de ontem foi um exemplo de que a Guerra Fria já acabou", enquanto centenas de manifestantes muçulmanos gritavam nas ruas da cidade: "Alá é a superpotência, não os Estados Unidos".
Dois policiais e três manifestantes saíram feridos nos protestos na cidade do sul da Índia, onde 40% da população é muçulmana. Os protestos em Hiderabad dirigiram-se principalmente contra a ocupação norte-americana no Afeganistão e no Iraque.
Imprensa européia comenta o acordo
Na Alemanha, o Frankfurter Allgemeine Zeitung ressalta os aspectos estratégicos e econômicos que justificam o acordo entre os dois países, salientando porém que tal acordo não seria uma "bagatela para as elites indianas, sedentas de prestígio", e que a Índia não assinou o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP).
O austríaco Der Standard afirma que realmente, em longo prazo, o tratado ajudará a Índia a tornar-se energeticamente independente. Entretanto, o jornal austríaco também citou o custo estratégico do acordo: a desconfiança sobretudo da China, do Paquistão e do Irã.
O diário Tages-Anzeiger, de Zurique, classifica o tratado bilateral como uma infração às regras do Direito Internacional, pois possibilitaria à Índia, que não assinou o TNP, o desenvolvimento de ogivas nucleares. Por seu nepotismo nuclear, o governo norte-americano estaria colocando em risco a arquitetura da segurança mundial.
O parisiense Libération classificou como histórico o tratado assinado em Nova Déli. Com ele, o presidente dos EUA teria matado dois coelhos com uma cajadada só e teria equalizado a principal revolução geopolítica do século 21: a Índia teria os mesmos trunfos da China e em poucos anos poderá tornar-se a terceira potência mundial, "com a vantagem de ser um Estado de Direito de tradição democrática, com um sistema político descentralizado e uma grande classe média".
Analista questiona Tratado de Não-Proliferação
Para Peter Philipp, analista da Deutsche Welle, o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) deveria ser modificado ou, até mesmo, revogado após a assinatura do acordo entre EUA, um dos maiores defensores do TNP, e a Índia, um país que até hoje se recusou a aderir ao documento.
O reconhecimento da necessidade energética dos indianos, os elogios vindos de Londres e Paris e a alegria de El Baradei, diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), não modificam, entretanto, o fato de que, atrás do acordo, escondem-se outras intenções.
Em primeira linha está o Irã. Com o novo tratado, os norte-americanos evitam a construção do gasoduto ligando o Irã à Índia, que soube tirar vantagem, da forma mais inteligente, da querela entre Irã e EUA.
Entretanto, para Philipp, permanecem as questões: como querem os Estados Unidos justificar agora de forma séria sua campanha contra o programa atômico iraniano? E se o Paquistão quiser assinar com os norte-americanos um igual acordo?
Justificar o tratado com o fato de a Índia ser uma democracia seria bastante demagógico, já que Washington demonstrou várias vezes que seu apoio não depende da forma de Estado, mas sobretudo de seus próprios interesses globais.
Armas e munições
Um dia após a assinatura do tratado de cooperação nuclear para fins civis, o Pentágono americano anunciou a intenção de venda de um sistema bélico de alta tecnologia à Índia. Os EUA pretendem oferecer, entre outros, jatos de caça F-16 e F-18 aos indianos. Segundo o Pentágono, seu objetivo é "apoiar a Índia a suprir a sua necessidade de defesa".
Neste sábado, Bush estará no Paquistão. Apesar do atentado ao consulado norte-americano no porto paquistanês de Karachi na quinta-feira (02/03), onde quatro pessoas morreram, Bush anunciou que não cancelará sua visita a Islamabad.
O Paquistão, tradicional rival da Índia, já anunciou que irá se esforçar, durante a visita de Bush, na consecução de um acordo semelhante ao assinado com a Índia.