"Antes de Israel, pairava uma nuvem de dor e insegurança"
19 de abril de 2018Filho de imigrantes judeus do Leste Europeu, o escritor Amos Oz nasceu em Jerusalém no dia 4 de maio de 1939, num momento em que os horrores do Holocausto estavam começando a se desdobrar. Ele veio ao mundo nove anos antes de o Estado de Israel ser proclamado num território anteriormente conhecido como Mandato Britânico da Palestina.
Apesar de ter crescido como um "militante sionista", Oz se tornou um defensor de uma solução de dois Estados para resolver o conflito. Em meio às celebrações dos 70 anos da proclamação do Estado de Israel, a última obra de Oz, Mais de uma luz: fanatismo, fé e convivência no século 21, continua argumentando que permitir a criação de um Estado palestino é "questão de vida ou morte para o Estado de Israel".
Em entrevista à DW, o autor, responsável por 40 livros e traduzido em mais de 40 línguas, fala sobre o que significa Israel para ele.
DW: Israel inicia nesta semana as comemorações dos 70 anos de sua criação. O senhor vai brindar à fundação do Estado judaico?
Amós Oz: Sim, vou brindar a Israel, porque comparo o mundo em que nasci com o mundo em que vivemos hoje. O mundo atual não me parece ser um paraíso ou céu. Mas eu nasci no mundo da Alemanha nazista – com Hitler, Stálin e Mussolini. Nasci num minúsculo enclave de refugiados judeus amedrontados. Éramos menos de um milhão, sem perspectivas claras ou futuro. Havia esperanças, mas não havia uma perspectiva clara. Sim, eu acho que esse mundo muito duro, cruel, sangrento em que vivemos hoje é menos sangrento, cruel e sem esperanças que o mundo do início dos anos 1940.
O senhor nasceu em Jerusalém ainda antes de o Estado de Israel ser proclamado. Como era a vida nesse "minúsculo enclave"?
Durante toda a minha infância, uma nuvem pesada, cheia de dor, desilusão e insegurança pairava sobre a minha casa, minha pequena rua, minha vizinhança, sobre a Jerusalém judaica, o Israel judaico.
Meus pais nunca dividiram comigo o amor desiludido que sentiam pela Europa. Isso não é assunto para se falar com um menininho: sobre uma Europa que você amou e que te expulsou violentamente e coberto de vergonha. Mas eu conseguia sentir a dor e as saudades. Eu conseguia até intuir que eles tentavam criar artificialmente um pequeno enclave europeu em meio ao clima quente e seco de Jerusalém. Era um mundo estranho para um menininho, cheio de segredos, cheio de censura familiar.
O senhor tinha nove anos quando David Ben-Gurion proclamou a independência do Estado de Israel. Como viveu o dia 14 de maio de 1948?
O dia 14 de maio foi uma sexta-feira. Dois ou três meses antes, Jerusalém já estava ocupada pelos árabes. A única rua que ligava Jerusalém às outras partes judaicas do país praticamente estava toda na mão dos árabes.
De tempos em tempos, alguns comboios de veículos conseguiam penetrar na cidade. Mas vivemos fome e falta d'água, porque as bombas d'água haviam sido alvejadas por tropas iraquianas. Jerusalém não tinha água – e tinha medo.
No romance autobiográfico De amor e trevas, o senhor conta que, antes de 1948, ainda era possível visitar amigos da família em bairros árabes de Jerusalém. Quando isso acabou?
Alguns meses antes do dia 14 de maio, uma espécie de cortina de ferro dividia Jerusalém em uma cidade judaica e uma cidade árabe. Alguns habitantes árabes dos bairros judaicos se mudaram para o leste e o sul da cidade. Habitantes judeus do leste e do sul se mudaram para o norte e o oeste por temores de segurança.
Depois da guerra de 48 – a guerra de independência de Israel – Jerusalém era, fisicamente, tão dividida quanto Berlim com um muro de ferro. Campos minados, arame farpado e uma terra de ninguém. Do telhado da nossa casa, eu conseguia ver Jerusalém Oriental. Conseguia ver o Monte Scopus e os bairros árabes. Mas também conseguia ver a Lua – e as chances de eu conseguir pisar num desses locais eram as mesmas que as de pisar na Lua. Não parecia realista.
Como o senhor vê Jerusalém hoje em dia?
Tenho sentimentos mistos sobre Jerusalém. É fascinante, é linda, é trágica e extremamente atrativa para qualquer tipo de fanático ou salvador, para gente que quer melhorar o mundo, profetas autoeleitos ou messias. Isso é fascinante. Mas acredito que não conseguiria viver em meio a toda essa gente. Preciso da minha distância.
Não sei o que vai acontecer em Jerusalém, mas sei o que deveria acontecer. Cada país desse mundo deveria seguir o exemplo do presidente [dos Estados Unidos, Donald] Trump e transferir sua embaixada para Jerusalém. Ao mesmo tempo, deveria haver embaixadas de países do mundo inteiro em Jerusalém Oriental como a capital da Palestina.
O senhor sempre defendeu com veemência a solução dos dois Estados...
Defendo essa ideia há 50 anos e ainda a acho correta. É simples. Estamos falando de uma casa muito pequena, mais ou menos do tamanho da Dinamarca. É o único país de origem dos judeus, também é o único país de origem dos árabes palestinos.
Não podemos nos tornar uma família feliz e unida, porque não somos um, não somos felizes, não somos família. Somos duas famílias infelizes. Então, precisamos dividir a casa em dois lares menores. Não há motivo para fantasiar que, após cem anos de derramamento de sangue, de ódio e de conflitos, judeus e árabes pulem numa cama de casal e comecem a se amar em vez de se guerrear como um casal desigual.
Em seu novo livro, Mais de uma luz, o senhor tenta desvendar o que faz do povo judeu uma nação e não apenas uma religião. Como o senhor definiria um Estado judeu?
Antes de fazer essa definição, preciso exigir uma diferenciação clara: "o Estado dos judeus" e não "o Estado judeu". O romance de [Theodor] Herzl é intitulado O Estado dos judeus, não O Estado judeu. Um Estado não pode ser judeu – tão pouco quanto um carro pode ser judeu. Um Estado é um veículo, um instrumento. Pode ser um instrumento bom, ruim, podre, fedido.
Um "Estado dos judeus" é outra ideia. Isso significa que os judeus, assim como qualquer outro grupo no mundo, tem o direito de ser uma maioria e não uma minoria numa pequena mancha de terra. Este é o Estado do povo judeu – e, ao mesmo tempo, o de todos os seus outros cidadãos não judeus. Minha descrição é como deveria ser, não como é na realidade.
Quando menino, o senhor era um sionista militante, um fanático.
Eu acreditava que a questão dos judeus sionistas era 100% certa. E qualquer um que contestasse isso, ou que se colocasse no caminho dessa questão, era um antissemita, um racista, um monstro. Demorou um tempo para compreender que a realização do sonho dos judeus tinha um preço. E, em grande medida, os árabes palestinos precisaram pagar o preço por isso. Como criança, eu não entendia assim. Entendo isso agora.
O senhor teme um novo antissemitismo – também nas críticas a Israel? Onde está o limite? Até que ponto é legítimo criticar o Estado de Israel, e onde começa o antissemitismo?
Eu temo o antissemitismo e o reconheço em algumas críticas a Israel. Se você argumentar que Israel comete crimes horríveis em territórios ocupados, eu vou concordar com você. Se você for além e disser que Israel comete os piores crimes do mundo hoje em dia, vou dizer que é exagero e que não concordamos. Se você disser que tudo o que os judeus fazem com os palestinos é pior do que o que os nazistas fizeram com os judeus, eu diria que o seu lugar é numa clínica psiquiátrica.
Mas, se você acrescentar "E, por isso, não deveria haver Israel", chegou o momento em que você passou do limite. Ninguém disse, depois de Hitler, que não deveria haver mais uma Alemanha. Ou que não deveria haver mais Rússia depois de Stálin.
Onde o senhor vê Israel em 70 anos? O que deseja para o Estado no futuro?
Este é o país dos profetas, há muita concorrência no negócio das previsões aqui (risos). Eu nem ouso dizer onde Israel estará em sete meses. Digo o que quero. Será a resposta mais curta da entrevista: eu quero paz.