Entrevista
20 de outubro de 2008Constantin von Barloewen é professor de Antropologia Comparada da Escola Superior de Design e Artes de Karlsruhe. Nascido em 1952 em Buenos Aires, cresceu na Argentina e na Alemanha, deu aulas em várias universidades da Europa e dos EUA e vive atualmente em Paris.
É autor de diversos livros, como Clown. Por uma Fenomenologia do Tropeço (Clown. Zur Phänomenologie des Stolperns), História da Civilização e Modernidade na América Latina (Kulturgeschichte und Modernität Lateinamerikas) e o recém-publicado na Alemanha Antropologia da Globalização (Anthropologie der Globalisierung). Leia abaixo a íntegra da entrevista com o escritor.
DW-WORLD.DE: Em seu livro Antropologia da Globalização, o senhor afirma que a cultura latino-americana se distingue essencialmente da norte-americana, seja na visão da morte, da natureza ou mesmo nas relações entre os gêneros. O diálogo entre essas culturas é possível?
Constantin von Barloewen: Esse diálogo é, no mínimo, bastante difícil, porque todas as constantes antropológicas – se é que se pode dizer assim – entre as culturas latino e norte-americana são completamente distintas. A América Latina se caracterizou até o século 19 pela Escolástica católica, muito metafísica, espiritual e transcedental. Esse transcedentalismo se opõe à tradição cultural norte-americana pragmática, empírica, lógica e analítica.
Quando foram fundadas as primeiras universidades na América Latina, no fim do século 15 e início do 16, no México e no Peru, que formações eram oferecidas? Além de Medicina, estudava-se Teologia, Filosofia, Ciências Humanas. E quase nenhuma ciência natural ou empírica. Ao contrário da América do Norte, onde, quando da fundação das primeiras universidades (Harvard, Princeton, Yale, etc), cem anos depois da América do Sul, foram oferecidas, de início, formações em Física e Química, por exemplo – ciências úteis e aplicáveis.
Obviamente a diferença hoje não é tão clara como no início do período coloonial, isso é claro. Mas se você pensa nos mal-entendidos, ou melhor, na falta de compreensão da administração norte-americana em relação à América Latina, essas diferenças ainda são visíveis. A falta de compreensão da América do Norte frente à América do Sul não se dá somente devido a fatores econômicos ou políticos, mas é, do ponto de vista antropológico, resultado de uma história cultural, de vários séculos, completamente distinta entre as duas partes do continente.
Hoje, porém, a América Latina mobiliza-se cada vez mais através do Mercosul, por exemplo, ou na oposição à Alca, a zona de livre comércio. Os sul-americanos simplesmente não querem mais ser apenas mercados receptores dos produtos norte-americanos. Hoje, forma-se cada vez mais uma identidade latino-americana frente à hegemonia norte-americana.
Na sua opinião, o culto ao vencedor não faz parte da cultura latino-americana como faz da norte-americana. O senhor diz que a América Latina, ao contrário, cultua mais a "dignidade do derrotado". Poderia citar exemplos concretos que comprovem esse hipótese?
Quando você toma os conceitos de pobreza e dignidade como constantes antropológicas, há de se lembrar, por exemplo, das grandes obras de Diego Velásquez [pintor espanhol, 1599–1660], nas quais um derrotado ou um pobre ainda pode manter sua dignidade, mesmo não sendo materialmente rico. Isso seria impensável na cultura norte-americana, que preza os grandes números, a vitória, o sucesso material.
O senhor descreve uma certa "falta de lugar" do latino-americano, que, entre outros, seria visível na literatura do continente. Poderia citar exemplos?
Penso nas primeiras obras de Ortega y Gasset. Ele esteve em 1917 pela primeira vez na América Latina, viajou pela Argentina e escreveu maravilhosamente sobre os "horizontes abertos", que o impressionaram muito. Penso também em Octavio Paz com seu Labirinto da Solidão, em Borges com seu conto maravilhoso O Sul. E penso também em filmes como os de Fernando Solanas sobre o sul ou de Carlos Sorín, diretor argentino, com seu belíssimo O Cachorro (Bombón, el perro). Essa falta de lugar, que é sempre associada ao sul, é específica da literatura e da arte latino-americanas.
O senhor descreve o ensaio como sendo uma forma de expressão latino-americana por excelência. Esse pensador ensaísta não existe da mesma forma no Velho Mundo?
É claro que existem exemplos europeus de pensadores. No entanto, a especificidade do latino-americano está nessa coesão do pensamento entre literatura, política e ciência, na mistura dessas três formas e também na relação com questões sociais, com questionamentos sobre a justiça. Carlos Fuentes, Octavio Paz, Pablo Neruda, Miguel Ángel Asturias ou Guimarães Rosa (este último no Brasil) – foram diplomatas. Todos, de certa forma, oscilavam entre a política e a literatura. Ou seja, mesmo diante de todos os exemplos europeus, continuo a acreditar que este tipo de pensador é uma especificidade latino-americana.
Seus textos em Antropologia da Globalização se aproximam muito da forma do ensaio. Suas descrições da pequena comunidade de Sosua, na República Dominicana, chega a se assemelhar a um roteiro cinematográfico. O senhor acredita que redige seus textos desta forma devido às suas raízes latino-americanas?
Com certeza. Embora seja preciso dizer que o caráter literário do texto sobre Sosua foi uma opção consciente. Quando estive na Universidade de Harvard, em 1982, fui convidado a ir à República Dominicana. Sosua era, naquela época, uma província completamente desconhecida, cheia de imigrantes judeus. Hoje, o lugar se tornou, infelizmente, quase um ponto turístico.
De forma geral, acredito que a inteligência intuitiva é muito superior e se aproxima, no fim das contas, mais da empiria. Não acredito na chamada objetividade científica nas ciências humanas, como a conhecemos nas ciências naturais. A inteligência intuitiva é para mim, como antropólogo, muito importante.
O senhor afirma em seu livro acreditar que a América Latina pode se tornar "um exemplo, no futuro, da superação das cancelas religiosas ou raciais" para o resto do mundo. No entanto, em vários países, como no Brasil, o racismo é inerente à sociedade.
Tenho consciência de que o Brasil não é, de forma alguma, apenas a democracia étnica descrita com um excesso de otimismo por Gilberto Freyre nos anos 1930. Por outro lado, não acredito mais num mundo sob a hegemonia norte-americana, mesmo quando eles insistem em espalhar canhões, como fizeram no Iraque.
Acredito num mundo multipolar, num mundo de arquipélagos, como a América Latina já conhece há muito tempo. A América Latina é caracterizada por uma lógica híbrida (talvez seja possível explicar desta forma), onde o logos e o mito se unem e onde não há lugar para um logocentrismo puro, para o racionalismo e para o utilitarismo como na América do Norte.
O senhor diz acreditar na "incompatibilidade entre a cultura latino-americana e as exigências de uma civilização tecnológica“. O que o senhor quer dizer exatamente com isso?
A compatibilidade entre tecnologia e cultura é distinta nas Américas do Norte e Latina. Da mesma forma como a esprititualidade também é uma outra, o que leva a uma ética de trabalho também distinta. O caráter retórico da Constituição democrática ilustra a situação. Na América Latina, copiou-se muito da Europa, mas tudo aquilo era só papel, maculatura.
O continente tem, até hoje, uma relação debilitada com a modernindade. E as constituições têm, com freqüência, até hoje, um caráter meramente retórico, sem que haja uma identidade entre Constituição e realidade. É como uma cobertura sobre o bolo. O bolo é a herança cultural dos 400 anos. A modernidade é apenas a calda que cobre, mas não chega a adentrar o bolo.
Há em determinadas regiões da América Latina uma forma circular de lógica e uma outra forma de racionalismo, outras metáforas antropológicas. Pacha mama, a mãe natureza, tem outros significados. A natureza não está lá para ser militarmente subjugada, como na América do Norte, mas o homem precisa se curvar à ela, devido a seu caráter sagrado. A modernidade, neste caso, é, para mim, o mesmo que violentar a tradição cultural.
O senhor defende uma identidade que seja fortemente permeada pela interculturalidade. As tendências políticas na Europa, pelo menos em relação ao não-europeu, parecem seguir outro caminho. Como o senhor vê essa situação?
Acredito que haja cada vez mais gente que não tem mais uma raiz, mas sim um entrelaçamento de raízes e identidades. Vivemos numa civilização na qual há cada vez mais pessoas viajando – através do turismo, viajar se tornou relativamente barato. É possível pertencer a diversas culturas ao mesmo tempo.
Há identidades múltiplas e o homem não será nunca mais membro de uma determinada cultura. Um habitante da Indonésia, por exemplo, pode ser ao mesmo tempo muçulmano, cidadão indonésio e amante da música clássica ocidental. Um japonês pode facilmente amar os filmes neo-realistas italianos.
Na civilização atual, temos automaticamente várias identidades. Este é o ponto: a identidade intercultural é sempre mais do que uma ou outra identidade. Ela é um terceiro fator, algo novo muito mais abrangente, porque abarca em si várias identidades e tradições culturais distintas.
O senhor cita Relato de um Certo Oriente, romance do escritor brasileiro Milton Hatoum, como uma obra de traços transculturais, onde se cria uma ponte entre Ocidente e Oriente. Tais cenários híbridos são também possíveis no chamado Velho Mundo?
Acho que sim. Quando você pensa nos milhões de africanos do norte do continente que vivem hoje na França, ou nos paquistaneses e hindus em Londres ou nos mexicanos na América do Norte, percebe que está havendo uma deslocamento elementar.
A provável eleição de Barack Obama à Presidência dos EUA é somente a expressão dessa mudança de paradigmas, dessa nova atribuição de significado do mundo multipolar. Obama como negro na Presidência iria simbolizar uma nova civilização. Uma mudança geopolítica de paradigmas não apenas na economia, mas também em toda a postura étnica dos EUA. Ele pode se transformar no rosto antropológico de uma nova civilização mundial.