Análise: Homossexualidade, ponto crucial para o catolicismo
23 de outubro de 2020Aconteceu no voo de volta do Rio para Roma: após uma esfuziante Jornada Mundial da Juventude em julho de 2013, ao longo da Praia de Copacabana, o papa Francisco respondeu a uma pergunta dos jornalistas presentes no avião, com outra pergunta: "Quem sou eu para julgar os homossexuais?"
Sete anos mais tarde, ele redobra a carga. No novo filme documentário Francesco, o papa diz: "Os homossexuais têm direito a ter uma família, são filhos de Deus [...]. Ninguém pode ser expulso de uma família, e a vida dessas pessoas não pode se tornar impossível por esse motivo."
Ninguém? Padres e fiéis católicos também não? Certo está que a relação da Igreja Católica com a homossexualidade é marcada por contradições e dupla moral.
Pois o mesmo Francisco, que agora se pronuncia em favor da união civil entre homossexuais, rejeita seu casamento. E o mesmo que critica a discriminação por motivos de orientação sexual, nega aos padres gays uma vaga no seminário.
Ainda assim, em sua contradição o papa se manteve fiel a si mesmo. Já como arcebispo de Buenos Aires (1998 a 2013) ele se empenhava pela união civil. Embora, em primeira linha, a fim de evitar equiparações mais abrangentes como, justamente, o casamento homossexual.
A estratégia fracassou: em 5 de maio de 2010 o Congresso da Nação Argentina aprovou a implementação em âmbito nacional do casamento entre parceiros do mesmo sexo. Muitos outros países seguiram o exemplo.
União civil sim, casamento não
Em oposição à equiparação perante à lei, na Igreja Católica a homossexualidade permanece tabu. Em março de 2015, Francisco expulsou do Vaticano um padre polonês que havia se revelado homossexual.
No livro de entrevistas A força da vocação, do missionário espanhol Fernando Prado, publicado em 2018, o papa explicita: "Na vida consagrada e sacerdotal, esse tipo de tendência não tem lugar. Indivíduos com 'essas tendências' não devem ser aceitos em ordens religiosas e seminários de padres."
Também homossexuais laicos são excluídos pela Igreja Católica. Sua representação na Alemanha, o Comitê Central dos Católicos (ZdK), exige há anos que casais do mesmo sexo não sejam privados "da potência dos rituais de bênção". "Nós nos empenhamos para que em breve se elabore um rito oficial para a bênção de casais homossexuais", é a reivindicação do grêmio.
Talvez tal esperança não seja injustificada. O pároco de Mannheim Theo Hipp vê na iniciativa do papa pelo menos mais uma tentativa de reavivar o difícil debate sobre a homossexualidade na Igreja.
"Francisco escreveria no registro de qualquer pároco e ministro que ele deve agir em prol de uma vida digna e segurança juridica dos homossexuais", e esse posicionamento terá um efeito eclesiástico e político, é sua convicção. E Hipp deve conhecer o assunto, enquanto encarregado de preparar para o dia a dia sacerdotal na Alemanha numerosos padres vindos da Polônia, Brasil, Tanzânia e outros países, para compensar a carência de padres na Igreja Católica.
Resistência de novos católicos da Ásia e África
Quase a metade dos 1,3 bilhão de católicos do mundo inteiro vive no continente americano, em especial na América Latina. Na Europa, cerca de 20% da população professa a fé católica. No entanto, enquanto no Velho Mundo eles são cada vez menos, seu número cresce fortemente na Ásia e África, segundo o serviço de imprensa do Vaticano, Fides. Atualmente, 18% da população da África é católica.
No entanto, justamente nessas regiões de crescimento, as declarações mais recentes de Francisco desencadeiam tudo, menos entusiasmo. "Católicos africanos ou cristãos do Oriente Médio sobem pelas paredes quando se diz que parcerias homossexuais devem ser equiparadas ao casamento", explica o padre Hipp, frisando que "quando se trata de mudanças na Igreja mundial, eles se sentam à mesa com o papa".
Apesar da oposição por princípio dos dogmas do Vaticano e dos prelados conservadores sobretudo da Ásia e África, o padre alemão não considera necessário mais debates internos na Igreja sobre o tema homossexualidade. "Isso vai ocasionar um processo de esclarecimento que exporá a todos que nós, da Igreja, também produzimos verdadeiras desumanidades com o nosso dogmatismo. É bom que não tenhamos nenhum poder político."
Alexander Vogt, presidente da representação de interesses de lésbicas e gays nos partidos conservadores alemães União Democrata Cristã (CDU) e Social Cristã (CSU) é testemunha dessas feridas profundas: "Nós nos alegramos, porque há muito tempo esperamos por essas palavras. Estou esperando que o papa dirija a nós algumas palavras de contrição. Pois no passado as doutrinas da Igreja Católica provocaram muito sofrimento e dor entre os homossexuais."