O grande vencedor da eleição alemã
27 de setembro de 2021Quem acompanha a política alemã foi testemunha de uma ressurreição neste domingo (26/09): a do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD).
Moribundo até há alguns meses, o outrora Volkspartei ("partido de massas", como são chamadas aquelas agremiações que agrupam um grande número de eleitores, não raro abocanhando 40% dos votos) parecia, nas últimas eleições, destinado a ser um mero coadjuvante da União, como é conhecida a aliança entre os partidos-irmãos União Democrata Cristã (CDU) e União Social Cristã (CSU), em coalizões de governo.
Ou até mesmo ficar na sombra do Partido Verde, que, no início da atual campanha eleitoral, chegou a dar a impressão de que poderia liderar uma coalizão de governo com os social-democratas.
O milagreiro tem nome: Olaf Scholz, vice-chanceler federal e ministro das Finanças do atual governo.
Mas nem toda a responsabilidade pela vitória social-democrata cabe a ele: o SPD também fez a sua parte ao entrar unido na campanha eleitoral. E os adversários fizeram a parte deles, cometendo um erro atrás do outro.
Unidos em torno de Scholz
Parte dos problemas do SPD está na crise em que o partido se arrasta desde o fim da sua última experiência de governo, com o chanceler federal Gerhard Schröder em aliança com o Partido Verde, de 1998 a 2005.
As reformas do mercado de trabalho conhecidas como as reformas Hartz, implementadas pelo governo Schröder e das quais, aliás, Scholz foi um dos notórios defensores, sempre foram encaradas como traição à classe trabalhadora por social-democratas "de raiz".
Pior, a direita alemã – a União e o Partido Liberal Democrático (FDP) – sempre elogiou e encampou as reformas como se fossem uma ideia sua. Em resumo, elas transformaram uma economia que era conhecida como "o doente da Europa" na potência que ela é hoje.
Isso no aspecto econômico. O preço social delas está no centro de um debate que dura até hoje, sobre o quão justas foram essas reformas para com a parte mais vulnerável da população. Esse debate divide a esquerda alemã (até literalmente, pois a ala mais à esquerda do SPD deixou o partido e foi para A Esquerda, unindo-se a antigos comunistas e deflagrando a crise social-democrata).
E sobretudo corrói internamente o SPD. O que diferenciou o partido na atual campanha foi ter deixado esse debate de lado. Hoje o próprio SPD fala em abandonar o programa de assistência social Hartz 4, o mais famoso e polêmico pilar das reformas Hartz.
Outra parte dos problemas do SPD está no descontentamento da base com a participação, como parceiro minoritário, em governos da CDU/CSU, liderados pela atual chanceler federal, Angela Merkel. Aos olhos da base, essa situação prejudica o SPD.
Diante de tudo isso, os grandes nomes do partido, num processo interno democrático, entregaram o comando da legenda para as bases numa eleição para a presidência do SPD. Venceram Saskia Esken e Norbert Walter-Borjans, dois até então desconhecidos representantes da base e da esquerda do partido. O derrotado nessa eleição interna foi Scholz.
Consequência decisiva desse processo foi a pacificação interna do SPD, que partiu para a atual campanha eleitoral como uma frente unida. Scholz foi escolhido candidato a chanceler federal já em agosto de 2020, bem antes da concorrência conservadora e verde lançar os seus nomes.
E este é o primeiro aspecto que favoreceu o SPD: todo o partido estava com Scholz, ele era o candidato de todos, não havia outra opção.
Divisões entre conservadores e verdes
Bem ao contrário do que se viu nos conservadores, entre os quais o governador Armin Laschet, representante da ala de Merkel, teve primeiro que se impor numa disputa interna no começo de 2021 para depois ainda ter que se impor contra o pré-candidato da CSU, Markus Söder, em abril passado.
Até o fim da campanha havia entre muitos conservadores o sentimento de terem escolhido o candidato errado. Quando faltavam apenas duas semanas para a eleição, o secretário-geral da CSU, Markus Blume, não titubeou em bajular o seu chefe: a União estaria melhor nas pesquisas se tivesse optado por Söder.
Quem tem aliados assim não precisa de adversários.
Semelhante era a situação no Partido Verde, que empurrou o quanto pode a escolha entre um de seus copresidentes, Annalena Baerbock e Robert Habeck. A liderança partidária simplesmente deixou que ambos resolvessem entre eles quem seria o candidato, o que também só aconteceu em abril passado.
Como as regras partidárias dos verdes preveem que, em caso de empate na qualificação para uma vaga, esta fica com a pretendente feminina, Baerbock acabou sendo a escolhida. Habeck mais tarde declarou publicamente o quanto isso havia sido doloroso para ele, e mesmo assegurando total apoio à colega, não resistiu a lançar o comentário de que ela "puxou a carta da mulher", pelo qual foi admoestado por colegas mais antigas.
Quando o Partido Verde, que logo após a indicação de Baerbock chegou a assumir a liderança da corrida eleitoral numa pesquisa, começou a despencar, em parte por causa de erros cometidos pela própria candidata, não faltaram aqueles que disseram que talvez Habeck tivesse sido a melhor escolha.
Para o eleitor, ficou a mensagem, vinda tanto da União como do Partido Verde: "Esta ou este é a nossa candidata/candidato, mas certos disso nós não estamos."
Beneficiado pelos erros dos outros
O outro ponto determinante na vitória de Scholz tem pouco a ver com ele e com o SPD, mas sobretudo com os dois adversários: ambos cometeram erros que se mostraram decisivos.
Baerbock, tão logo assumiu a frente nas pesquisas eleitorais, foi, na análise de muitos observadores políticos, alvo de uma campanha armada para tirá-la da liderança da corrida. Denúncias de que ela enfeitou o currículo e cometeu plágio num livro se mostraram eficazes para construir a imagem de uma pessoa que se tenta passar por algo que não é – um pecado fatal para políticos alemães. Na Alemanha, vários políticos já tiveram de renunciar e tiveram suas carreiras encerradas por denúncias de plágios em teses de doutorado.
Baerbock sentiu o golpe, e nos debates eleitorais seguintes não conseguiu colocar os temas ambientais e sociais, tão caros aos verdes, à frente das denúncias contra ela. Acabou perdendo cerca de dez pontos, caindo de 26% para 16% em poucas semanas.
Já Laschet criou o próprio inferno. Sua mais famosa gafe foi a gargalhada que deu durante um discurso do presidente Frank-Walter Steinmeier a atingidos pelas trágicas enchentes no estado onde Laschet é o governador, a Renânia do Norte-Vestfália. O tom era de luto e dor pelas mortes e perdas, e Laschet, ao fundo, ria ao lado de partidários.
A gafe foi registrada em celulares, e as redes sociais não perdoaram. A União, que havia conseguido recuperar a dianteira sobre os verdes, também começou a cair nas pesquisas.
E o eleitor alemão começou a se perguntar se Scholz não seria, afinal, a melhor opção.
O candidato da continuidade
E aí entra o terceiro ponto, aquele que é a contribuição decisiva do próprio Scholz para sua vitória: ele soube encarnar a continuidade da era Merkel.
Os alemães, depois de 16 anos governados por uma chanceler que tem a fama de resolver crises, estão acostumados com a ideia de que, se surgir algum problema realmente sério, Merkel dará um jeito de resolvê-lo.
Um candidato que conseguisse transmitir esta mesma mensagem, a de um bom gerente de crises, teria assim uma grande vantagem na corrida eleitoral.
E Scholz encarnou justamente essa imagem, tanto pelo seu visual sóbrio, "pé no chão" e pragmático, como pela campanha eleitoral do SPD, que bateu no slogan "Scholz vai se ocupar disso", em referência a cada um dos desafios dos próximos anos.
Para reforçar a imagem de "novo Merkel", Scholz até posou para a capa da revista SZ Magazine imitando o gesto-símbolo da chanceler, o losango com as mãos (foi também uma referência ao candidato a chanceler federal pelo SPD em 2013, Peer Steinbrück, que posou para a capa da mesma revista mostrando o dedo do meio).
A mensagem não podia ser mais clara: ele, Scholz, vice-chanceler e ministro das Finanças do governo Merkel, é bem diferente do candidato anterior do SPD e muito semelhante a Merkel: é o verdadeiro candidato da continuidade.
Deu tão certo que a própria Merkel, depois de um debate eleitoral, viu-se obrigada a dizer que Scholz não era o "novo Merkel" e que o candidato dela era Armin Laschet.
As complicadas negociações para a formação de uma coalizão de governo podem até tirar a Chancelaria Federal de Scholz, nas próximas semanas, mas ele é o grande vencedor desta campanha eleitoral.