Ações contra colunistas ligam alerta de cerco a intelectuais
4 de junho de 2021Aliados de Jair Bolsonaro têm usado as instituições brasileiras como ferramenta para ofensiva jurídica e intimidatória a intelectuais críticos do governo e do bolsonarismo. A prática da perseguição política não está abertamente disseminada nem é institucionalmente estabelecida no Brasil, mas casos pontuais reproduzem o modus operandi de governos totalitários e autocráticos pelo mundo afora.
Dois casos ocorridos no mês passado tiveram grande repercussão pelos mecanismos heterodoxos na tentativa de reprimir a liberdade de expressão de críticos do presidente e de seu séquito. Um deles envolve o professor de direito constitucional da USP Conrado Hübner Mendes, doutor em direito e ciência política, colunista do jornal Folha de S.Paulo, e tem como algoz o procurador-geral da República, Augusto Aras.
O outro foi uma ação de dois senadores bolsonaristas na CPI da Pandemia que utilizaram a Polícia do Senado para tentar punir Celso Rocha Barros, doutor em sociologia pela Universidade de Oxford. Assim como Conrado Hübner, Rocha Barros também é colunista na Folha de S.Paulo, veículo de imprensa que tem se posicionado de maneira crítica ao atual governo.
"Tem efeito psicológico, parece que você será preso"
“Isso mostra o grau de esculhambação da política brasileira. Alguém achou que era razoável acionar a Polícia do Senado para reclamar de um artigo de opinião. E tem um efeito psicológico, parece que você será preso. Obviamente é uma tentativa de intimidação”, disse Celso Rocha Barros à DW Brasil.
O colunista diz não ter dúvidas de que “estão tentando calar os críticos”. “Os bolsonaristas percebem que estão em crise, os números nas pesquisas estão piorando bastante. Grupos que antes pareciam estar fechados com eles, como os militares, não estão dispostos a afundar junto”, afirmou.
Segundo ele, o caso de Conrado Hübner é ainda pior pelo fato de o procurador-geral ter acionado o Conselho de Ética da USP com objetivo de punir o professor da universidade, além de ter ajuizado na Justiça Federal do Distrito Federal uma queixa-crime contra o professor universitário.
“O procurador-geral está fazendo perseguição política. Ele tinha que ser derrubado. Evidentemente ele está perseguindo opositores, como fez o ex-ministro da Justiça André Mendonça, que se prestou a processar jornalistas que falam mal de Bolsonaro”, criticou o colunista.
Em entrevista à DW Brasil, Conrado Hübner afirma que “esse tipo de ataque tem sido comum e indistinto para quem emite críticas à esfera pública”. “Faz parte de um conjunto bastante extenso de repressão à ciência, à intelectualidade, à pesquisa e à opinião crítica. Liberdades em geral estão despencando no Brasil, e isso são os grandes relatórios globais sobre qualidade da democracia que estão dizendo. A liberdade acadêmica, especificamente, também está decaindo.”
Boletins têm textos idênticos até nos erros
Rocha Barros escreveu uma coluna intitulada Consultório do Crime tenta salvar Bolsonaro na CPI da Covid, em que aponta a existência de um grupo de parlamentares na comissão que atuam com intuito de “tumultuar a investigação, mentindo sobre a medicina”. Citou dois exemplos: os senadores Eduardo Girão (Podemos-CE) e Luiz Carlos Heinze (PP-RS). Ambos acionaram a Polícia do Senado e fizeram “boletim de ocorrência” contra Rocha Barros. O órgão legislativo instaurou procedimento para apurar “crime contra a honra”.
“A Polícia do Senado não tem atribuição de investigar isso. É absolutamente abusivo e protocolamos uma petição dizendo que o Celso não prestaria depoimento algum”, afirmou Luiz Francisco Carvalho Filho, advogado do sociólogo. A Polícia do Senado, acrescenta Carvalho Filho, “foi uma criação do Poder Legislativo para o resguardo da ordem dentro do Congresso”. “Não seria necessário que existisse, e agora querem ampliar as atribuições da Polícia do Senado. Essa atribuição de proteger a honra de senador ofendido não existe”, explica o advogado. Celso Rocha Barros, segundo o advogado, tem o direito de crítica e não vai se explicar pelo que disse. “Estamos aguardando e a expectativa é que o procedimento seja arquivado por falta de propósito.”
O “termo circunstanciado” [boletim de ocorrência] feito pelos dois senadores na Polícia do Senado Federal tem peculiaridades, a começar pelo local de ocorrência, que é a “rede mundial de computadores, sítio do jornal Folha de S.Paulo”.
O texto dos dois boletins de ocorrência é idêntico, repleto de erros ortográficos, mudando-se apenas o nome dos parlamentares em cada um deles. Ambos alegam que o sociólogo tem “evidente interesse em denegrir a imagem” dos parlamentares e que o título de sua coluna tem a pretensão de qualificar os senadores como criminosos.
Além de acusarem o colunista de ofensa, alegam que Rocha Barros tem o “interesse torpe” de taxar os dois senadores como cúmplices do presidente da República na morte de mais de 100 brasileiros durante a pandemia [o autor cita que o Brasil se aproxima de quase meio milhão de mortes]. “Desafio Heinze, Girão, Osmar Terra ou qualquer outro cúmplice de Bolsonaro a me mostrar um estudo em que Bolsonaro seja responsável por menos do que 100 mil mortes até o fim da pandemia”, escreveu Celso Rocha Barros, possivelmente o trecho ao qual os parlamentares se referem, ainda que a grafia do boletim de ocorrência cite 100, e não 100 mil.
Colunista vê bolsonarismo acuado
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não se pronunciou sobre o caso. Pelo Twitter, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que é relator da CPI da Pandemia, escreveu que “a iniciativa da Polícia do Senado de investigar jornalista por emitir opinião é ilegal, rebaixa a instituição e envergonha quem está comprometido com valores democráticos”.
Para Rocha Barros, a ofensiva do movimento autoritário ligado a Bolsonaro dá sinais de desespero e declínio, ainda que não se possa prever uma derrota eleitoral em 2022.
“Na CPI, colocaram esses senadores só para bagunçar, tumultuar. Todas as vezes em que a investigação está progredindo, eles entram lá falam coisas totalmente sem pé nem cabeça para gerar polêmica, virar uma briga. E isso é acobertar um crime. Eu tenho o direito de achar que isso é crime. O que eles fizeram é incontroverso. Vamos chegar a meio milhão de mortos. Isso tem que ser investigado. Entrar num procedimento investigativo para fazer palhaçada é terrível, uma conduta inaceitável”, justifica o colunista.
"Bolsonarismo penetrou nas instituições"
“O bolsonarismo penetrou nas instituições e as contaminou com uma visão autoritária, com ataques recorrentes à liberdade de imprensa, com a construção de uma pauta retórica de verdades que estão muito distantes de serem apuradas como tal”, alerta o advogado Marco Aurélio Carvalho, coordenador do grupo Prerrogativas, que atua em defesa do Estado Democrático de Direito. Ele aponta que “funções estratégias do Estado estão sendo ocupadas por pessoas que têm afinidade de princípios e proposições com Bolsonaro e o alto comando do governo”, sendo que o procurador-geral da República é a maior demonstração disso.
“Quando um procurador-geral vai para cima de um colunista, talvez isso seja o ápice da contaminação deste pensamento numa instituição que é um dos pilares da manutenção da democracia, como a PGR.” Bolsonaro e seu grupo, acrescenta, “tomaram o governo de assalto para defender seus próprios interesses”.
O arcabouço legal brasileiro, sustenta Carvalho, assegura e defende a liberdade de expressão “em todo e qualquer sentido”. “Temos uma das Constituições mais elogiadas do mundo para amparar esse direito da livre manifestação, de liberdade de imprensa. Essa Constituição, com todo arcabouço infraconstitucional, está sendo utilizada para defender a democracia no país e o direito das pessoas de se informarem e prestarem informação.” Esse arcabouço legal, segundo o advogado, assegura relativa tranquilidade para o exercício dessas atividades, ainda que sob constante ameaça. A reação ocorre e é diária, observa Carvalho, mas dá trabalho e provoca bastante desgaste aos que se tornaram alvos.