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Berlim homenageia com nome de rua ícone da luta antirracista

Julie Gregson
10 de julho de 2024

Capital alemã renomeou rua em homenagem à ativista, escritora e acadêmica americana Audre Lorde. Ela frequentou Berlim nos últimos anos de vida e fundou as bases do movimento negro alemão.

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Foto em preto e branco do rosto de Audre Lorde, mulher negra de turbante e brinco de pena
Escritora e ativista americana Audre Lorde, nos anos 1970Foto: CSU Archives/Everett Collection/picture alliance

"Negra, lésbica, feminista, socialista, mãe, guerreira, poeta" – era assim que o ícone LGBTQ+ Audre Lorde se descrevia. Nascida em 1934 em Nova York, filha de imigrantes caribenhos, a escritora foi premiada por suas poesias e ensaios apaixonados sobre idade, raça, classe e sexo.

Lorde, que morreu de câncer em 1992, visitou Berlim regularmente nos últimos oito anos de sua vida. Foi lá que ela deu o pontapé inicial ao movimento das afro-alemãs e negras alemãs.

Nas décadas de 1980 e 1990, Lorde ajudou a criar dois grupos para combater o racismo, promover a visibilidade política e cultural e mudar a ideia de que não era possível ser negro e alemão ao mesmo tempo: a Iniciativa de Pessoas Negras na Alemanha (ISD) e a Associação de Mulheres Negras na Alemanha (Adefra).

Agora, Berlim renomeou oficialmente uma rua, no distrito multicultural de Friedrichshain-Kreuzberg, em homenagem à escritora e ativista.

Mudar o nome de ruas não é algo incomum na Alemanha, tendo em vista sua história política turbulenta. Mais recentemente, a ISD liderou uma campanha para remover nomes de ruas considerados racistas ou que comemoravam figuras colonialistas da Alemanha.

A criação da Audre-Lorde-Strasse foi liderada por ativistas LGBTQ+ e antirracismo, bem como pelo Partido Verde. Seu objetivo é refletir a diversidade da sociedade no espaço público.

O distrito de Friedrichshain-Kreuzberg, que é governado pelos Verdes (Berlim conta com uma administração descentralizada), resolveu, há quase uma década, dar nomes de mulheres às ruas até que a paridade fosse alcançada.

Compromisso, reclamações e choque cultural

A renomeação, no entanto, foi marcada por compromissos e reclamações. Espelhando o estado dividido da política alemã, metade da rua original continua com o nome de Otto Theodor von Manteuffel, que foi um premiê conservador na antiga Prússia em tempos de muitos retrocessos democráticos. A divisão do nome da rua significou que os blocos de apartamentos tiveram que ser renumerados no novo trecho.

Placa da rua Manteuffelstrasse, em Berlim, abaixo de placa com o nome Audre-Lorde-Strasse, que passa a batizar um trecho da via.
Parte da rua recebeu o nome de Audre Lorde, a outra permaneceu com o nome do militar Otto Theodor von Manteuffel (1805 - 1882)Foto: Jürgen Held/IMAGO

Lorde veio pela primeira vez à cidade em 1984 para assumir uma cadeira de professora convidada na Universidade Livre de Berlim. Naquela época, Katharina Oguntoye, hoje escritora, historiadora e ativista, participou do seminário de Lorde sobre poesia de mulheres negras. Oferecer esse tipo de assunto era uma novidade na época.

Foi um momento decisivo para Oguntoye, que achou Lorde "muito carismática". "Ela era uma super-heroína", disse a escritora à DW. "Ela realmente conseguia se conectar com as pessoas e inspirá-las. Esse era um de seus grandes talentos, em todos os lugares que ela ia no mundo."

Naquela época, disse Oguntoye, o tema do racismo ainda era extremamente tabu na Alemanha. "As pessoas falavam sobre o Holocausto e sobre xenofobia, mas era bem diferente quando se tratava de racismo."

"Não há hierarquia de opressões"

Lorde veio a Berlim a convite de Dagmar Schultz, uma professora da FU Berlin na época. Schultz atribui a Lorde o mérito de ser a fonte não reconhecida da ideia de interseccionalidade.

Esse conceito revelou que as pessoas podem estar sujeitas a tipos múltiplos e sobrepostos de discriminação e marginalização. Por exemplo, a sociedade trata uma lésbica negra de forma diferente de uma mulher heterossexual negra, que, por sua vez, sofre discriminação de forma diferente de uma mulher heterossexual branca.

"Não há hierarquia de opressões", escreveu Lorde em 1983, alertando simultaneamente sobre o erro de se lutar contra algumas formas de discriminação e injustiça, mas não contra outras.

Ela conclamou as feministas brancas alemãs a lançar uma luz sobre o racismo – para o bem delas próprio.

Schultz, uma alemã branca que participou do movimento pelos direitos civis nos EUA na década de 1960, publicou uma antologia que incluía os ensaios de Lorde – o trabalho que levou Katharina Oguntoye a frequentar o curso na universidade predominantemente branca.

Duas mulheres de cabelos curtos com cartaz do filme sobre Audre Lorde ao fundo.
Dagmar Schultz (à esquerda) e Ika Hügel-Marshall (à direita) co-produziram um filme sobre Audre LordeFoto: privat

A experiência negra alemã

Com a orientação e o incentivo de Lorde, Oguntoye e a falecida poeta May Ayim – ambas com vinte anos na época – escreveram a antologia inovadora "Farbe bekennen" ("Assumindo a cor – mulheres afro-alemãs no rastro de sua história").

Foi o primeiro livro a usar uma perspectiva negra para traçar biográfica e academicamente a história afro-alemã desde o Império Prussiano até o pós-Segunda Guerra Mundial. A obra, publicada por Schultz, refutou a ideia de que os alemães negros, de alguma forma, não pertenciam ao país e desafiou sua marginalização.

Em sua infância, Oguntoye experimentou a vida em ambos os lados da Cortina de Ferro. Nascida sob o regime comunista na República Democrática Alemã (RDA), ela se mudou por um breve período para a Nigéria e depois para a República Federal da Alemanha.

"Eu costumava dizer em meu trabalho antirracismo: 'Olá, sou duplamente alemã'. As pessoas ficavam chocadas porque achavam que os negros não podiam ser alemães. Acho que esse é um mito preso na cabeça dos alemães, de que os alemães são brancos, loiros e de olhos azuis."

Oguntoye foi cofundador da ISD e da Adefra, bem como da associação Joliba, com sede em Berlim, uma rede intercultural que oferece ajuda a famílias negras e afro-alemãs.

Katharina Oguntoye é uma mulher negra; ela sorri e toca no queixo, atrás tem um fundo preto
Katharina Oguntoye conviveu com Audre Lorde em seus tempos de BerlimFoto: Privat

Solidariedade e coalizões contra o racismo

A exposição fotográfica Audre Lorde –The Berlin Years está sendo realizada para acompanhar a mudança de nome da rua. Ela inclui fotos de Dagmar Schultz. Ela também criou um documentário, arquivos e uma viagem online pela capital alemã, marcando os lugares onde Lorde viveu, trabalhou e se divertiu.

Na abertura, Marion Kraft, acadêmica e tradutora de Lorde e da escritora negra americana Amanda Gorman, recitou o último poema de Lorde, East Berlin, December 1989. A obra trata do aumento do racismo após a queda do Muro de Berlim.

Em meio à ascensão da extrema direita na Alemanha e na Europa, o evento ressaltou a necessidade contínua de solidariedade e coalizões contra o racismo.

Kraft disse que as pessoas precisam se perguntar o que podem fazer pessoalmente para mudar as coisas na sociedade. "Não posso fazer isso sem mulheres negras, sinti e roma, mulheres judias, mulheres palestinas. Todas aquelas que estão nas bordas da sociedade de várias maneiras. Precisamos falar sobre privilégios."

Schultz, agora com 80 e poucos anos, lembra-se melhor de Lorde por seu espírito de luta, sua atitude positiva em relação à própria vida, apesar da longa doença, em relação à diferença e à mudança.

"Ela fez a pergunta: O que você quer fazer com sua vida? Ela disse: Lembrem-se de que todos vocês têm algum poder, mesmo que seja muito pequeno, tentem definir seu poder e tentem usá-lo porque, caso contrário, ele será desperdiçado ou será usado contra vocês."