"Bolsonaro pegou o bônus da identidade evangélica"
18 de abril de 2024O Brasil tem hoje mais de 60 milhões de evangélicos, grupo religioso que mais cresce no país. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), houve aumento de 228,5% no número de templos evangélicos oficiais entre 1998 e 2021. Esse crescimento, no entanto, veio acompanhado de preconceito e simplificações sobre o fenômeno, afirma a jornalista Anna Virginia Balloussier.
No recém-lançado livro O púlpito: fé, poder e o Brasil dos evangélicos (editora Todavia), a jornalista traz complexidade a um grupo que vem ganhando representatividade na política nacional desde a redemocratização e fomenta um mercado de empreendedores e consumidores, já que vertentes da religião passaram a estimular o enriquecimento em vida.
Em entrevista à DW, a jornalista, que cobre o tema para a Folha de S. Paulo desde 2010, fala sobre a expansão da cultura gospel, a polarização que intensificou a identificação dos evangélicos com o ex-presidente Jair Bolsonaro e a dificuldade da esquerda brasileira em lidar com esse grupo religioso.
"Embora plurais, os evangélicos acabaram sendo reconhecidos como atores de extrema direita, uma caracterização injusta quando se pensa na base evangélica, de maioria negra, pobre e feminina", afirma Anna Virginia, reforçando que a política institucional não domina o cotidiano das igrejas evangélicas.
Ao lado da análise histórica e social, O púlpito reúne relatos de gente como Luiz, que se envolveu com o tráfico, mas deixou o crime ao se converter; o empreendedor Silas Bitencourt, criador do estimulante sexual Levanta Varão e do "primeiro reality show gospel do país"; e Camila Mantovani, militante da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto.
DW: O livro deixa claro o desejo de complexificar o entendimento dos evangélicos como grupo social heterogêneo. Como você buscou equilibrar histórias singulares e a formação de uma identidade coletiva, com reflexos na política, na economia e nos costumes brasileiros?
Anna Virginia Balloussier: Quando você envereda pelas igrejas evangélicas, naturalmente vê essa pluralidade. Antigamente, a gente evocava o estereótipo das mulheres de cabelo até abaixo da cintura, o homem de paletó com a Bíblia debaixo do sovaco. Hoje isso caiu um pouco por terra, mas ainda existe a imagem do crente conservador que vai tentar te converter na marra.
Sempre cito a Igreja Batista para mostrar o quão plurais são os evangélicos. Dou três exemplos: André Valadão, pastor que sugeriu que Deus deveria matar pessoas LGBTQIA+; Josué Valandro, pastor da igreja de Michelle Bolsonaro [esposa do ex-presidente Jair Bolsonaro]; e Henrique Vieira [deputado federal pelo PSOL/RJ], que é muito progressista. Todos são da Batista, que é uma igreja histórica, não pentecostal, mas também não é uma só.
Além disso, encontramos contradições na mesma pessoa. O livro tem um caso sintomático: a pastora que odeia que a filha seja pró-aborto. A filha pergunta à mãe: "quando chega na igreja uma mulher que acabou de abortar, o que você faz? Chama a polícia?". A pastora responde: "dou abraço, colo". A filha diz: "então o que você quer é a mesma coisa que eu, descriminalizar o aborto, que essa mulher não vá para a cadeia".
Brinco que o evangélico médio não é o Silas Malafaia [líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, conhecido por discursos de ódio a homossexuais e contra o aborto] nem o Henrique Vieira, ele está muito mais para o cabo Daciolo [ex-deputado federal e candidato à Presidência em 2018]. É alguém muito apegado ao discurso bíblico, com questões morais fortes, e ao mesmo tempo preza pela economia e a igualdade social.
Entre os fatores do crescimento da religião evangélica no país, você aponta a possibilidade de mobilidade social trazida pelas correntes neopentecostais, por vezes com um discurso individualista, e também a formação de um sentido de comunidade. Seria um paradoxo?
Antes de tudo, queria fazer um adendo, que acho que não falo com tanta clareza no livro: a gente sempre fala dos neopentecostais de forma muito pejorativa, só que não existe essa categoria nas igrejas. Se você perguntar para qualquer evangélico, ninguém vai responder que é neopentecostal. Essa nomenclatura veio de fora para dentro, de uma tese do [sociólogo] Ricardo Mariano. E nem ele gosta mais dessa etiqueta, porque ele acha que hoje está tudo muito confuso.
De alguma forma, a gente tinha uma carência de laços, fossem as comunidades eclesiais de base da Igreja Católica ou a própria organização da vida comunitária. A igreja evangélica substituiu esse vácuo e ao mesmo tempo trouxe com muita força o discurso meritocrático, ligado à Teologia da Prosperidade, mas tão simbólico dos tempos atuais. Você vence por mérito seu, com um empurrãozinho de Deus. É um paradoxo, mas não é excludente.
Na pluralidade de vertentes da religião evangélica, a "customização da fé", como você diz, contribui para o preconceito em relação aos evangélicos?
Dificulta a compreensão, mas também existe um pouco de má vontade. Antes era por uma questão histórica, por ser um país muito católico. Isso persiste, mas hoje o fator mais forte são as guerras culturais de polarização, em que qualquer mão estendida era confundida a ir para o outro time.
Cada um teve que escolher seu lado e, nesse pendor, os evangélicos acabaram ficando mais à direita. Embora plurais, eles acabaram sendo reconhecidos como atores de extrema direita, uma caracterização injusta quando se pensa na base evangélica, de maioria negra, pobre e feminina.
Qual o papel da política institucional nessa imagem, já que os evangélicos são hoje imediatamente associados ao bolsonarismo?
Ser evangélico não é a única coisa que te faz votar em alguém, mas quando a identidade evangélica entrava em jogo nas eleições, de fato era mais conservadora. Tanto que, em todas as eleições até 2002, a maioria dos grandes líderes se aliou ao candidato mais à direita: Collor, Fernando Henrique Cardoso. O Lula conseguiu reverter isso, a Dilma teve muito apoio em 2010. Em 2014, isso começou a baixar, até a ascensão do Bolsonaro em 2018.
O maniqueísmo do debate foi ajudado pelas redes sociais e pelo fortalecimento do que se convencionou chamar pautas identitárias. Isso acabou criando um efeito backlash [um forte sentimento entre um grupo de pessoas em reação a uma mudança ou eventos recentes na sociedade ou na política, de acordo com definição do dicionário Cambridge]. Um bom exemplo é o aborto. Os evangélicos, de modo geral, sempre foram mais contra o aborto do que a favor, mas não brigavam com os casos previstos em lei. Nos últimos anos, vimos iniciativas como o Estatuto do Nascituro e, já no governo Bolsonaro, a portaria do Ministério da Saúde segundo a qual a mãe ter sido estuprada não lhe dá o direito de abortar. Há uma disposição maior para endurecer.
E houve um forte fator individual: Bolsonaro, que não é evangélico, mas foi batizado como um aceno ao segmento. O sociólogo Paul Freston usa uma imagem de que gosto muito, de que ele seria o único presidente pancristão. Pela primeira vez, os pastores estavam no Palácio do Planalto orando. Bolsonaro foi o primeiro presidente a ir a uma Marcha para Jesus, desde 1993. Por que isso não acontecia antes? "Ah, porque os outros não queriam misturar religião com política". Mas quantos políticos já não estiveram em Aparecida [cidade paulista onde fica o Santuário Nacional de Nossa Senhora de Aparecida]? Bolsonaro pegou o bônus da identidade evangélica, mas não o ônus de ser visto como presidente crente. Porque ainda estamos num país de maioria católica, onde, nessa polarização, ser crente angaria, mas também repele votos.
Qual sua análise da relação do atual governo Lula e dos movimentos de esquerda em relação aos evangélicos? Há alguma mudança?
Esse é o grande desafio. O slogan novo do governo, "Fé no Brasil", não é literal sobre religião, mas foi visto como um aceno aos evangélicos, que deram uma reprovação gigante ao governo. Comparo o distanciamento da esquerda com uma fatura de cartão de crédito não paga. Por muito tempo, o problema era adiado e se fazia um aceno tímido nas eleições. Era como pagar dez reais numa fatura de mil, e os juros dos cartões são exponenciais.
O distanciamento dos evangélicos também reagiu de forma exponencial. A esquerda está tentando acordar para isso, mas ainda não sabe como lidar com o problema de forma conciliatória com seus valores.
O livro mostra o surgimento de uma cultura gospel de massa no Brasil nos anos 1990, com música, livros e feiras. Você vê a expansão dessa cultura para além do segmento religioso ou ainda é um nicho?
Havia um mercado consumidor de evangélicos não representados, mas isso tem extrapolado o cercadinho evangélico. Um exemplo do livro é como expressões evangélicas têm aparecido também na boca de não evangélicos, que, nas periferias, já usam termos como "tá repreendido". Assim como até hoje todos nós, católicos ou não, falamos "Vixe Maria", "Nossa Senhora". Isso mostra a força cultural de um movimento. Também existe o consumo de artistas gospel e influencers evangélicos. Deive Leonardo, por exemplo, não é pastor, tem um discurso altamente proselitista e um exército de seguidores nas redes sociais, não só evangélicos.
A produção cultural e midiática sobre os evangélicos é caracterizada por muitos estereótipos e simplificações, como o livro analisa. Você vê hoje uma mudança nesse retrato em filmes, na TV e na cobertura jornalística?
Sem dúvida. Em 1995, a Globo lançou a minissérie Decadência, com Edson Celulari interpretando um pastor vigarista, que diziam ser inspirado no bispo Edir Macedo. A cobertura evangélica estava nas páginas policiais. Até que isso começou a mudar.
A Globo fez o Festival Promessas, no início dos anos 2010, recebeu um artista gospel pela primeira vez no Domingão do Faustão, e no ano passado teve a primeira novela com uma protagonista evangélica não estereotipada [em Vai na Fé].
A gravadora Som Livre criou um selo, o Spotify já tem uma pessoa de olho em músicas cristãs. Percebeu-se que existe um público consumidor com apetite de um conteúdo mais identificado com seus valores.