Brasil: exemplo para o mundo?
11 de maio de 2005O medo de que uma aproximação maior da América Latina com o mundo árabe pudesse resultar num "complô" antiamericano foi um dos temas centrais nas notícias veiculadas pela mídia européia sobre o encontro realizado em Brasília. Sinais de que os centros geopolíticos de poder observam com atenção o comportamento dos países que consideram "periféricos".
Contato sem filtros
O encontro em Brasília "parece um pouco a retomada de um projeto terceiro-mundista que o neoliberalismo condenara ao ridículo e à inutilidade. Mas parece claro que o simples fato de os contatos serem diretos, sem o filtro primeiro-mundista, é bastante salutar. Em geral, os árabes vêem os sul-americanos pela ótica européia e norte-americana e os sul-americanos fazem o mesmo em relação aos árabes. Isso produz distorções não somente por causa das caricaturas e estereótipos, mas porque, sem dúvida, a visão européia e norte-americana em relação a árabes e sul-americanos é adequada à Europa e aos EUA", comenta Mamede Jarouche, professor de Língua e Literatura Árabe da Universidade de São Paulo, em entrevista à DW-WORLD.
Novos parceiros comerciais
É possível, no entanto, que os olhos do governo Lula tenham se voltado para o hemisfério sul do planeta, em primeira linha, porque estas regiões têm se firmado como parceiros comerciais cada vez mais importantes para o Brasil. "As relações com o Japão e com a Europa são antigas. Em relação aos EUA, existe um certo estranhamento em função de tudo o que tem a ver com governo Bush", observa Manfred Nitsch, professor de Economia do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim.
Diante deste quadro, a América Latina estaria em busca de alternativas. "E o mundo árabe é muito diversificado, tem uma população de 300 milhões de habitantes", assinala o escritor brasileiro Milton Hatoum, em entrevista à DW-WORLD. Hatoum lembra que a exportação de produtos brasileiros para o mundo árabe cresceu sensivelmente após a visita de Lula pela região, no último ano. Mesmo assim, apenas 3,5% das importações árabes vêm da América Latina e somente 1,5% das importações do continente provém de países árabes.
Laços culturais
A importância central de um encontro entre latino-americanos e árabes em solo brasileiro é vista, acima de tudo, como fruto de uma ligação cultural forte ao longo dos séculos. "Há aproximadamente 20 milhões de latino-americanos de origem árabe e oito milhões de brasileiros descendentes de sírios e libaneses. Muitos mantêm laços familiares com os países de seus antepassados", observa Hatoum, ele próprio descendente de imigrantes libaneses.
A idéia de fortalecer a ponte cultural entre América Latina e mundo árabe é, por outro lado, vista com reservas pela comunidade judaica. Representantes do Centro Simon Wiesenthal criticaram duramente trechos da "Declaração de Brasília", afirmando perplexidade frente à ausência de uma condenação explícita dos atentados terroristas no documento.
Sociedades multiétnicas e multirreligiosas
Para Nitsch, a própria discussão incessante sobre o Holocausto nos últimos anos fez com que resquícios de anti-semitismo fossem perdendo força na América Latina, até mesmo em países onde ele se já se manifestou mais acentuadamente, como no Chile e na Argentina.
"A possibilidade de dar início a uma guerra ou construir muros de separação por causa de conflitos religiosos, comum na Velha Europa, ou melhor, no Velho Mundo, é geralmente vista com espanto pelas sociedades multiétnicas e multirreligiosas da América Latina", analisa Nitsch. E exatamente a peculiaridade de o Brasil ser um "microcosmo multiétnico e multirreligioso" estaria sendo usada pelo governo Lula como modelo de convivência pacífica entre os povos.
Convivência pacífica
"O Brasil tem orgulho de expor ao mundo como cristãos, judeus e muçulmanos podem viver em paz um ao lado do outro e se mostra como modelo a ser seguido na forma de lidar com conflitos étnicos e religiosos, como os que ocorrem no Oriente Médio", assinala Nitsch.
Defendendo posição semelhante à de Hatoum, que acredita que "o governo brasileiro pode e deve participar do processo de paz no Oriente Médio, pois no Brasil palestinos, árabes e judeus sempre conviveram sem atritos. Aliás, muitos deles casaram-se entre si ou com brasileiros de outras origens (étnicas ou religiosas) e isso só veio enriquecer a sociedade brasileira".
Atenção dos centros de poder
Para além do diálogo cultural, não se deve ignorar as intenções do governo brasileiro – que são, inclusive, semelhantes às do governo egípcio – em conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Esta pode ter sido a mola que moveu Lula a organizar o encontro de cúpula.
Uma decisão, diga-se de passagem, perspicaz. Pois um evento semelhante na América Latina que não tivesse a participação da região que desperta as luzes de "alerta máximo" nos centros de poder europeus e norte-americanos, como se tornou o mundo árabe depois dos atentados de 11 de setembro, certamente não teria chamado nem um décimo da atenção que o encontro em Brasília conseguiu despertar.