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Califórnia encara de frente reparações por escravidão

Michaela Küfner
1 de julho de 2023

Força-tarefa divulga relatório com recomendações para compensar população negra do estado, com previsão de pagamentos que podem chegar a US$ 1 milhão para indivíduos com ancestrais escravizados.

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Arte mural recordando massacre racista em Tulsa, Oklahoma, EUA
Arte mural recordando massacre racista em Tulsa, OklahomaFoto: Michaela Küfner/DW

A Califórnia é o primeiro estado americano a considerar medidas para compensar a população negra pela escravidão e os subsequentes mais de 100 anos de discriminação. Estabelecida em 2020, a agência California Reparations Task Force não estabeleceu cifras específicas, e sim uma fórmula para calcular o valor das indenizações individuais, que poderiam chegar, dependendo das circunstâncias, a pouco mais de 1 milhão de dólares (R$ 4,8 milhões).

As mais de 100 recomendações da força-tarefa para lidar com o impacto econômico do racismo e compensar a desigualdade foram divulgadas na quinta-feira (29/06). Caso siga as conclusões da comissão, o estado poderá se confrontar com o pagamento de centenas de bilhões de dólares pelos danos causados aos californianos anteriormente escravizados e seus cerca de 2,5 milhões de descendentes.

Segundo o documento, de mais de 1.000 páginas, a população negra do estado foi vítima de expropriações e diversos tipos de discriminação, além de representar números desproporcionais de encarceramento. O relatório detalha que, embora a Califórnia não fosse um dos estados escravistas do país, permitiu que muitos brancos se estabelecessem com seus escravos e continuassem a tratá-los desta forma. Também aponta que a organização racista Ku Klux Klan era muito atuante no estado, e que a segregação era tão implacável quanto em outros lugares.

O curso adotado poderá determinar a direção do debate sobre reparações em todo o país. "Se a Califórnia não conseguir implementar, vai ser difícil no nível nacional", antecipa o senador estadual democrata Steven Bradford. Para ele, o estado será a "pedra de toque" para qualquer chance de alcançar uma política nacional de reparações – o que para ele é um imperativo moral.

Segundo uma consulta recente do Pew Research Center, 68% da população é totalmente contra a ideia de reparações: uma maioria esmagadora que torna ainda mais notável a iniciativa californiana.

Como não é de espantar, a raça é um fator determinante para o posicionamento na questão: 77% dos americanos negros são a favor, contra apenas 18% brancos. Esse abismo entre os dois lados evidencia a divisão social que irrompe cada vez que um cidadão negro é vítima de violência policial.

Iniciativa californiana pioneira

O sentimento nacional contrário às reparações talvez também explique a procrastinação política pelo próprio homem que deu a partida para a agência californiana: o governador Gavin Newsom assinou a lei criando a California Reparations Task Force em 2020, mas agora que ela entregou seu relatório, o democrata não quer se comprometer com os pagamentos recomendados.

Seguir adiante implica o risco de descontentar a base eleitoral branca e latina de Newsom, enquanto inação pode frustrar seus apoiadores negros. Constando entre os principais candidatos do Partido Democrata para concorrer à presidência ao fim da era de Joe Biden, ele tem bons motivos para manter o debate vivo sem que nenhum dinheiro mude de mãos.

Como quase tudo nos EUA, as reparações são uma questão divisiva, sobretudo entre democratas e republicanos. Um projeto pela criação de uma comissão nacional para estudar as reparações está entravada no Congresso há anos.

Deputado republicano Byron Donalds, EUA
Republicano Byron Donalds objeta reparações pela escravidão nos EUAFoto: DW

Para o deputado Byron Donalds, um dos únicos cinco republicanos negros da Câmara dos Representantes, essa simplesmente "não" é uma questão. Assim como seu colega Ralph Norman, da Carolina do Sul, ele está seguro que o país "não tem como arcar" com tal medida.

No fim das contas, é ao Legislativo democrata da Califórnia que caberá a última palavra sobre se haverá ou não indenizações e em que montante. Porém antes mesmo que os parlamentares se reúnam para discutir qualquer proposta, a força-tarefa já teve papel pioneiro ao estabelecer uma quantia concreta num assunto delicado e, para alguns, abstrato.

Foi a primeira vez que o Legislativo de um estado americano tentou elaborar um plano para abordar e potencialmente compensar a discriminação histórica e sistêmica de seus cidadãos negros. 

Até agora, só um punhado de municipalidades em todo o país se comprometeu com alguma forma de reparação pela escravidão. Elas vão de 25 mil dólares de subsídio à moradia para os residentes negros de longa data de Evanston, Illinois, aos 10 milhões de dólares de um orçamento para projetos em Providence, Rhode Island. San Francisco e Chicago também estão debatendo orçamentos para financiar algum tipo de compensação financeira.

Exemplares do relatório interino de 2022 da força-tarefa da Califórnia para reparação de afro-americanos
Relatório interino de 2022 da força-tarefa da Califórnia para reparação de afro-americanosFoto: Jeff Chiu/AP/picture alliance

Evoluir no debate nacional ou reacendê-lo

Uma motivação para as reparações é o "abismo racial de riqueza": as estatísticas têm demonstrado consistentemente que a renda média dos brancos é dez vezes maior do que a dos negros. Entre os negros americanos, 44% possuem casa própria – o meio clássico para acumular e transmitir riqueza intergeneracional –, contra 72% dos brancos.

Um estudo recente relaciona diretamente essa desigualdade gritante à escravidão: "A principal razão para essa ampla e duradoura disparidade entre americanos negros e brancos remonta às condições em torno da Guerra Civil", concluiu o think tank independente National Bureau of Economic Research.

Por exemplo; colonos brancos muitas vezes recebiam terras ao chegar à América. Mas quando os escravos foram finalmente liberados numa sociedade que haviam ajudado a construir, lhes foram negados meios para adquirir posses próprias.

A promessa inicial de "40 acres e uma mula" – uma breve relíquia da Guerra Civil – provou-se um sonho fugidio para as famílias negras. Os americanos brancos não só tiveram uma vantagem inicial: seu racismo deixou bem pouco espaço para crescimento econômico negro.

As reparações pela escravidão e discriminação estão prestes a se transformar num movimento de base nos Estados Unidos. A questão é se vão fazer evoluir debate nacional ou reacendê-lo.

(AFP, ots)