Califórnia encara de frente reparações por escravidão
1 de julho de 2023A Califórnia é o primeiro estado americano a considerar medidas para compensar a população negra pela escravidão e os subsequentes mais de 100 anos de discriminação. Estabelecida em 2020, a agência California Reparations Task Force não estabeleceu cifras específicas, e sim uma fórmula para calcular o valor das indenizações individuais, que poderiam chegar, dependendo das circunstâncias, a pouco mais de 1 milhão de dólares (R$ 4,8 milhões).
As mais de 100 recomendações da força-tarefa para lidar com o impacto econômico do racismo e compensar a desigualdade foram divulgadas na quinta-feira (29/06). Caso siga as conclusões da comissão, o estado poderá se confrontar com o pagamento de centenas de bilhões de dólares pelos danos causados aos californianos anteriormente escravizados e seus cerca de 2,5 milhões de descendentes.
Segundo o documento, de mais de 1.000 páginas, a população negra do estado foi vítima de expropriações e diversos tipos de discriminação, além de representar números desproporcionais de encarceramento. O relatório detalha que, embora a Califórnia não fosse um dos estados escravistas do país, permitiu que muitos brancos se estabelecessem com seus escravos e continuassem a tratá-los desta forma. Também aponta que a organização racista Ku Klux Klan era muito atuante no estado, e que a segregação era tão implacável quanto em outros lugares.
O curso adotado poderá determinar a direção do debate sobre reparações em todo o país. "Se a Califórnia não conseguir implementar, vai ser difícil no nível nacional", antecipa o senador estadual democrata Steven Bradford. Para ele, o estado será a "pedra de toque" para qualquer chance de alcançar uma política nacional de reparações – o que para ele é um imperativo moral.
Segundo uma consulta recente do Pew Research Center, 68% da população é totalmente contra a ideia de reparações: uma maioria esmagadora que torna ainda mais notável a iniciativa californiana.
Como não é de espantar, a raça é um fator determinante para o posicionamento na questão: 77% dos americanos negros são a favor, contra apenas 18% brancos. Esse abismo entre os dois lados evidencia a divisão social que irrompe cada vez que um cidadão negro é vítima de violência policial.
Iniciativa californiana pioneira
O sentimento nacional contrário às reparações talvez também explique a procrastinação política pelo próprio homem que deu a partida para a agência californiana: o governador Gavin Newsom assinou a lei criando a California Reparations Task Force em 2020, mas agora que ela entregou seu relatório, o democrata não quer se comprometer com os pagamentos recomendados.
Seguir adiante implica o risco de descontentar a base eleitoral branca e latina de Newsom, enquanto inação pode frustrar seus apoiadores negros. Constando entre os principais candidatos do Partido Democrata para concorrer à presidência ao fim da era de Joe Biden, ele tem bons motivos para manter o debate vivo sem que nenhum dinheiro mude de mãos.
Como quase tudo nos EUA, as reparações são uma questão divisiva, sobretudo entre democratas e republicanos. Um projeto pela criação de uma comissão nacional para estudar as reparações está entravada no Congresso há anos.
Para o deputado Byron Donalds, um dos únicos cinco republicanos negros da Câmara dos Representantes, essa simplesmente "não" é uma questão. Assim como seu colega Ralph Norman, da Carolina do Sul, ele está seguro que o país "não tem como arcar" com tal medida.
No fim das contas, é ao Legislativo democrata da Califórnia que caberá a última palavra sobre se haverá ou não indenizações e em que montante. Porém antes mesmo que os parlamentares se reúnam para discutir qualquer proposta, a força-tarefa já teve papel pioneiro ao estabelecer uma quantia concreta num assunto delicado e, para alguns, abstrato.
Foi a primeira vez que o Legislativo de um estado americano tentou elaborar um plano para abordar e potencialmente compensar a discriminação histórica e sistêmica de seus cidadãos negros.
Até agora, só um punhado de municipalidades em todo o país se comprometeu com alguma forma de reparação pela escravidão. Elas vão de 25 mil dólares de subsídio à moradia para os residentes negros de longa data de Evanston, Illinois, aos 10 milhões de dólares de um orçamento para projetos em Providence, Rhode Island. San Francisco e Chicago também estão debatendo orçamentos para financiar algum tipo de compensação financeira.
Evoluir no debate nacional ou reacendê-lo
Uma motivação para as reparações é o "abismo racial de riqueza": as estatísticas têm demonstrado consistentemente que a renda média dos brancos é dez vezes maior do que a dos negros. Entre os negros americanos, 44% possuem casa própria – o meio clássico para acumular e transmitir riqueza intergeneracional –, contra 72% dos brancos.
Um estudo recente relaciona diretamente essa desigualdade gritante à escravidão: "A principal razão para essa ampla e duradoura disparidade entre americanos negros e brancos remonta às condições em torno da Guerra Civil", concluiu o think tank independente National Bureau of Economic Research.
Por exemplo; colonos brancos muitas vezes recebiam terras ao chegar à América. Mas quando os escravos foram finalmente liberados numa sociedade que haviam ajudado a construir, lhes foram negados meios para adquirir posses próprias.
A promessa inicial de "40 acres e uma mula" – uma breve relíquia da Guerra Civil – provou-se um sonho fugidio para as famílias negras. Os americanos brancos não só tiveram uma vantagem inicial: seu racismo deixou bem pouco espaço para crescimento econômico negro.
As reparações pela escravidão e discriminação estão prestes a se transformar num movimento de base nos Estados Unidos. A questão é se vão fazer evoluir debate nacional ou reacendê-lo.
(AFP, ots)