Caminhando logo cedo pela principal rua do bairro em que moro, na Zona Sul do Rio de Janeiro, pude acompanhar o fluxo de chegada de estudantes de três escolas, que não se distanciam mais do que um quilômetro nessa mesma via.
Na verdade, duas delas são vizinhas, e a outra fica um pouco mais acima. São duas escolas particulares e religiosas e uma escola pública e laica. Sei que o que vi foi apenas um fragmento da entrada de crianças e jovens em suas respectivas escolas, mas sei também que os detalhes são deveras reveladores.
O que vi e enxerguei foram pais brancos, alguns de carros, outros de bicicleta, outros a pé, levando seus filhos igualmente brancos para as duas escolas particulares e religiosas da rua. Crianças e adolescentes devidamente acompanhados pelos seus responsáveis. E vi também crianças e jovens, na sua esmagadora maioria negros, chegando a pé e desacompanhados para a escola.
É possível que os pais já estivessem do outro lado da rua, no ponto de ônibus, olhando de longe seus filhos entrarem no espaço escolar público e laico. Mas pode ser também que esses pais e mães já estivessem a caminho do trabalho, provavelmente em conduções lotadas (quem conhece o transporte público do Rio de Janeiro, sabe do que estou falando), se é que já não estavam em sua labuta diária.
Se eu tivesse tirado uma fotografia dessa cena, poderia tranquilamente utilizá-la para explicar como o racismo funciona no Brasil. Um país que não precisa de leis segregacionistas para determinar os lugares sociais, econômicos e políticos que negros e brancos devem ocupar.
Então, eu peço licença aos meus leitores negros, para me endereçar à cara gente branca que me lê, sobretudo aqueles e aquelas que tendem a abraçar a causa antirracista: vocês já olharam para o entorno de suas vidas? Já enxergaram como são os lugares que vocês frequentam, os bairros em que moram, as escolas caras que pagam para seus filhos? Já pararam para ver quantos amigo/as negro/as vocês têm (se é que vocês os tem)? Que lugar as pessoas negras ocupam em suas vidas?
Afinal, vocês sabem onde o racismo lhes toca?
Hoje, 21 de março, é o Dia Internacional da Luta contra a Discriminação Racial. Um dia escolhido pela ONU para lembrar uma tragédia que se abateu na África do Sul em 1960, quando, em meio a um protesto pacífico na luta contra o apartheid, tropas do Exército chegaram atirando, matando 69 pessoas e deixando mais de 180 feridas.
Uma história que, infelizmente, segue se reinventando todos os anos, todos os meses, todos os dias, fazendo da luta antirracista um compromisso que não conhece a palavra trégua – como bem nos demonstra a campanha 21 Dias de Ativismo contra o Racismo, que há anos rememora essa data no Brasil.
E daí me pergunto: o que essa luta diz para e sobre você?
Engajamentos virtuais e camisetas com dizeres motivacionais são bem-vindos, mas estão longe de resolver o problema. Mesmo porque, na maior parte das vezes, o racismo segue sendo entendido como um problema do negro
Sem dúvida, a população negra é quem sofre cotidianamente as mais variadas formas de discriminação e marginalização, muitas vezes pagando com a própria vida as ações violentas do racismo. E essa dimensão deve ser denunciada e combatida. Mas o racismo não para por aí. Ele é muito maior. Tão grande é seu tamanho, que não titubeio em dizer que o racismo também é boa parte daquilo que vocês consideram “normal”.
Existem muitas maneiras de explicar o racismo, mas aquela que considero melhor é: o racismo é um sistema de poder que fundou a modernidade. Nesse sistema de poder, os indivíduos são classificados de acordo com sua pertença racial. Uma classificação que é propositadamente desigual, criando uma série de benesses para o grupo que se encontra no topo da pirâmide, os brancos, e uma série de ônus para os demais grupos racializados, como negros, indígenas, asiáticos, etc.
E, a jogada de mestre desse sistema de poder reside, justamente, na não racialização da população branca. Dito de outra forma, a população branca toma para si o lugar da universalidade, racializando todos aqueles que são os seus “outros”; ou seja, para a imensa maioria da população branca, o racismo segue sendo um problema dos outros. Esse crème de la crème do racismo é o que chamamos de branquitude – um nome mais bonito para falar de supremacia branca.
Desse modo, o racismo segue sendo um problema do negro, ou um problema dos indígenas, sem que haja uma percepção mínima de como esses problemas são a mola propulsora para que os brancos não-racializados se mantenham no topo do sistema de poder que os beneficia.
Então, neste 21 de março, além de falar das políticas genocidas que atravessam a história da humanidade, a execução sumária de negros e negras pelas forças policias, a desigualdade salarial, ou o encarceramento em massa, eu também convido nossa cara gente branca a se racializar e reconhecer os privilégios que organizam suas vidas – que estão, entre outros lugares, na possibilidade de acompanharem seus filhos até a escola, ou de poderem acordar um pouco mais cedo para fazer exercício de manhã, de frequentarem espaços privilegiados (como seus locais de trabalho e lazer) e não se incomodarem com a ausência quase total de negros. E para quem tiver dificuldades em entender esse conceito, a boa notícia é que existe uma literatura cada vez mais farta e institutos, como o Observatório da Branquitude, que nos dão uma visão didática da questão.
Sem dúvida que esses privilégios variam a depender a classe social dos sujeitos, de sua identidade de gênero. E é preciso dizer que mesmo aqueles simpáticos e engajados na causa antirracista usufruem dos seus privilégios, pelo simples fato de serem pessoas brancas.
Imagino que para o/as aliado/as brancos não seja nada confortável se enxergar nesse lugar de privilégio. Mas a vida também é feita de incômodos e desconfortos. E eles são fundamentais, na medida que nos fazem sair do lugar. E sinto dizer que, sem essa etapa, não há luta antirracista possível para os brancos e brancas desse país.
Então, minha cara gente branca, proponho que neste 21 de março, vocês parem e olhem seu entorno com olhos de quem quer enxergar.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.