Caso Tyre Nichols revive apelos por reforma policial nos EUA
30 de janeiro de 2023Três semanas após a morte do jovem negro Tyre Nichols, de 29 anos, espancado por policiais durante uma fiscalização de trânsito em Memphis, a polícia local decidiu dissolver a unidade especial envolvida no incidente. A medida "é do interesse de todos", segundo comunicado emitido pelo departamento policial da cidade – os membros da unidade especial "concordaram sem reservas" com a decisão.
Familiares de Nichols saudaram o desmantelamento da força-tarefa criada em 2021 para combater atividades ilegais em bairros com taxas altas de criminalidade.
A morte de Tyre Nichols gerou uma nova onda de indignação e protesto nos Estados Unidos – e reviveu reivindicações por uma reforma nas forças de segurança e na cultura policial no país.
Os cinco policiais envolvidos no caso foram demitidos, presos e acusados de homicídio em segundo grau, agressão, sequestro, má conduta e opressão. Eles pertenciam à agora dissolvida unidade especial do departamento policial de Memphis. No estado americano do Tennessee, onde fica Memphis, o homicídio em segundo grau é um estágio intermediário entre assassinato e homicídio culposo. Sequestro, neste caso, refere-se à detenção ilegal de um ser humano.
Imagens de vídeo da operação mostram os policiais tentando derrubar Nichols com uso de gás lacrimogêneo e uma arma de choque. Nichols tenta fugir, mas os policiais conseguem impedir. Posteriormente, o jovem é visto gemendo de dor ao mesmo tempo que os policiais desferem socos e chutes repetidamente enquanto ele está caído no chão.
71 ordens em 13 minutos
O jornal americano The New York Times analisou minuciosamente as imagens do incidente e afirmou que Nichols recebeu uma enxurrada de ordens impossíveis de terem sido seguidas. Durante os 13 minutos de martírio, foram 71 comandos – em sua maioria confusos, conflitantes e inatingíveis.
As ordens foram emitidas em dois locais – próximo ao veículo da vítima e também na área para onde ele havia fugido e onde acabou por ser espancado. As ordens eram muitas vezes simultâneas e contraditórias – ordenaram que mostrasse as mãos, enquanto seguravam suas mãos; disseram para que ficasse no chão, embora ele já estivesse no chão; ordenaram que ele se reposicionasse mesmo quando não tinha controle de seu corpo. E mesmo quando conseguia fazer o que lhe foi pedido, os policiais responderam com força excessiva – e eventualmente fatal.
Especialistas entrevistados pelo The New York Times, afirmaram que as ações dos policiais de Memphis retrataram um exemplo flagrante de um problema de longa data no policiamento americano: os policiais punem fisicamente os civis por desrespeito ou desobediência – uma prática, segundo eles, comum em décadas anteriores, principalmente nos anos 1980.
De Rodney King a Tyre Nichols
Aproximadamente 32 anos atrás, o violento espancamento de Rodney King pela polícia de Los Angeles provocou apelos nacionais por mudanças. Estas manifestações contra a violência policial e por uma alteração da cultura policial no país têm se repetido num ritmo incessante desde então – entre os casos mais famosos estão as mortes de Amadou Diallo, em Nova York, Oscar Grant, em Oakland, Michael Brown, em Ferguson, e George Floyd, em Mineápolis.
As imagens do assassinato de Floyd em 2020 acabaram por desencadear numa proposta legislativa batizada com seu nome e em demonstrações de solidariedade de corporações e ligas esportivas por todo o país. Mas não houve modificações na cultura enraizada do policiamento americano – os cidadãos negros pedem por uma cultura que promova um cotidiano sem medo, confiança na polícia e respeito mútuo.
Autoridades americanas do alto escalão disseram que o assassinato de Nichols aponta para a necessidade de reformas mais ousadas, que deve ir além de simplesmente diversificar os membros das corporações policiais, mudar as regras de uso da força e encorajar os cidadãos a registrar queixas.
"O mundo está nos observando", disse o promotor distrital do condado de Shelby, Steve Mulroy. "Se há algo de bom a ser tirado dessa escuridão é que talvez esse incidente possa abrir uma conversa mais ampla sobre a necessidade de uma reforma da polícia."
O presidente dos EUA, Joe Biden, ecoou os pedidos dos líderes nacionais dos direitos civis. "Para proporcionar uma mudança real, devemos ter responsabilidade quando os agentes da lei violam seus juramentos e precisamos construir uma confiança duradoura entre os agentes da lei – a grande maioria dos quais usam o distintivo com honra – e as comunidades em que eles juraram servir e proteger", disse Biden.
O presidente americano disse ainda ter conversado com a mãe de Nichols e que prometeu a ela que iria "defender o caso" no Congresso e pressioná-lo para que aprove o projeto de lei George Floyd "para colocar isso sob controle".
"Mudar a regra não muda o comportamento"
Os estados americanos aprovaram quase 300 projetos de lei de reforma policial após o assassinato de Floyd – criaram supervisão civil da polícia, incrementaram o treinamento antipreconceito, estabeleceram limites mais rígidos para o uso de força e alternativas para detenções em casos que envolvem pessoas com doenças mentais.
"Mudar uma regra não muda um comportamento", disse Katie Ryan, chefe de gabinete da Campanha Zero, um grupo de acadêmicos, especialistas em policiamento e ativistas que trabalham para acabar com a violência policial. "A cultura de um departamento policial tem que mudar para realmente implementar as políticas, não apenas dizer que há uma nova regra em vigor."
No entanto, o projeto de lei que leva no nome de George Floyd segue sem resolução no Congresso. A proposta visa banir perfis raciais, proibir estrangulamentos e mandados de busca sem aviso prévio ao habitante da residência, limitar a transferência de equipamento militar aos departamentos de polícia, além de facilitar a apresentação de acusações contra policiais infratores.
O presidente da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP), Dereck Johnson, também criticou o Congresso americano. "Ao deixar de escrever uma lei, vocês estão escrevendo outro obituário", disse Johnson. "Diga-nos o que vocês vão fazer para homenagear Tyre Nichols. Podemos nomear todas as vítimas de violência policial, mas não sabemos citar uma única lei que vocês aprovaram para lidar com isso."
pv/md (DPA, AFP, AP, ots)