"Castanha" brinca com limites entre documentário e ficção
7 de fevereiro de 2014Revelar muitas vezes o que se encontra atrás da maquiagem e do figurino de um ator não é uma tarefa fácil. Uma escolha que pode destruir a fantasia e o fascínio criados pelos palcos e os holofotes.
Mas esse é o convite do diretor gaúcho Davi Pretto em Castanha, seu filme estreia, que teve exibição na noite desta sexta-feira (07/02) dentro da mostra Forum da Berlinale, o Festival de Cinema de Berlim.
Pretto e Castanha se conheceram em 2008, quando o diretor rodava Quarto de espera, seu curta-metragem de estreia. "Toda vez que enquadrava o João, ficava muito impressionado com o rosto dele. Foi algo meio mágico", disse o diretor à DW Brasil.
O fascínio pelo rosto e o olhar de Castanha levou o diretor a querer trabalhar novamente com o ator. "Queria fazer um 'filme de ator', nos moldes do John Wayne ou Cassavetes, pelo grande ator que ele é", explicou.
Pretto começou a pesquisar e acabou se fascinando não só pelo ator João Carlos Castanha, mas por sua história, universo e sua misteriosa e enigmática maneira de encarar a vida e seu trabalho. Em 2011, surgiu a ideia de fazer um filme sobre Castanha, que topou.
Melhor maneira para contar aquela história
Castanha tem 52 anos e vive sozinho com a mãe Celina em um apartamento no subúrbio de Porto Alegre. Ele se ocupa com o trabalho de transformista em clubes gays da cidade e com pequenos papeis em peças de teatro, filmes e televisão. Primeiramente, o filme seria um documentário de observação, sem roteiro, levado pela vida e pelo cotidiano de Castanha.
"Comecei a pensar no papel da ficção na vida dele, já que está sempre atuando. Ele tem uma vida multifacetada, passando rapidamente de um personagem para o outro. Essas muitas ficções que ele vive começaram a me fascinar", contou o diretor.
O filme ganhou uma dimensão maior quando Pretto começou a frequentar a casa de Castanha como parte do processo de pesquisa. "Percebi que em casa ele era outro personagem, com os amigos ele era outra coisa. Comecei a pensar como sempre estamos nos reinventando para as outras pessoas. Perdemos muito tempo criando essas histórias", disse.
Assim, o projeto começou a se transformar, embaralhando ficção e realidade em um formato só. Foi desenvolvido um roteiro que partia de situações concretas e subjetivas para melhor se aprofundar no universo de Castanha. "Eu dizia o que ele deveria fazer nessas situações que começaram a aparecer a partir do roteiro", explicou Pretto.
Visão particular da realidade
Jogando com os tênues limites entre ficção e realidade, o diretor nos transporta ao coração da família Castanha. Através do universo de João e de sua relação com a mãe, somos levados a um épico de microproporções. Uma jornada pessoal, que não é marginal, mas que é contada pelas bordas, pelos pequenos dramas de uma vida amarrada pelo destino de ser quem você é.
"Depois que o filme estava pronto, comecei a perceber como o contexto da homofobia no Brasil cerca o filme. Todos os personagens são muito marginalizados, o que não parece à primeira vista porque eles são os protagonistas. Mas através dessa história, podemos ver esse Brasil", disse o diretor.
As filmagens de Castanha ocorreram durante os protestos que tomaram contam das ruas do Brasil no ano passado. Um fato marcante que acabou entrando no filme de uma maneira natural e acrescentou um pano de fundo poderoso à história.
"Eu sempre fui muito fiel ao João. Ele não se importa com essas coisas e estava sempre distante. Os protestos afetaram o cotidiano das filmagens, mas colocamos no filme da maneira em que ele via aquela situação: através da televisão", explicou Pretto.
Verdade através da intimidade
O filme foi feito com uma equipe pequena, fato comum na realização de documentários. "Tínhamos sempre só três pessoas no set de filmagem. Era o máximo que podíamos ter para criar intimidade. Eu não gosto da definição documentário e ficção. Não é dessa maneira que eu encaro o cinema", completou.
A verdade e a cumplicidade necessárias para um projeto como Castanha foram alcançadas através não só do fascínio e admiração, mas principalmente através da confiança. "Conheci o Davi quando ele ainda era estudante. Sou um fã de David Lynch e cinema europeu. Fizemos um curta juntos e eu gostei muito da estética dele", disse João Carlos Castanha à DW Brasil.
A viagem para Berlim não foi apenas a primeira internacional de Castanha, mas a estreia do filme no festival também será a primeira vez que o ator verá o filme sobre a história da sua vida.
"Eu confio muito no trabalho do Davi, assim, fica muito mais fácil de me entregar. Chegava um momento que eu anulava a câmera. Não tenho vergonha e pudor de fazer nada. Sou muito bem resolvido", contou o ator.
De sua maneira e em seu próprio caminho, Castanha é uma espécie de celebração marginal de uma figura enigmática e que através dos combates diários encontra as razões para estar vivo. "Vou me emocionar muito, mas não tenho medo. O Davi já faz parte da família", concluiu Castanha.