Chefe da OMS associa indiferença à crise no Tigré a racismo
19 de agosto de 2022O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, voltou a tematizar a crise humanitária no Tigré, sugerindo que o racismo explicaria o desinteresse da comunidade internacional pela região no norte da Etiópia, palco de violentos conflitos há quase dois anos.
Tedros, que é natural do Tigré, afirmou na última quarta-feira (17/08), em pronunciamento a jornalistas, que o cerco a 6 milhões de pessoas na região já dura 21 meses e é "o pior desastre do planeta".
"A crise humanitária no Tigré é maior do que na Ucrânia. Sem qualquer exagero. E eu disse isso muitos meses atrás: talvez a razão seja a cor da pele das pessoas no Tigré", disse.
"Não ouvi nos últimos meses, ou em muitos meses, sequer um chefe de Estado falando sobre a situação no Tigré, em nenhum lugar. Especialmente no mundo desenvolvido. Por quê? Acho que sabemos."
Segundo o chefe da OMS, a população na região não tem acesso a serviços básicos, alimentação, medicamentos e meios de comunicação, além de ser impedida de deixar o território.
"É a pior crise humanitária. Estou dizendo: em nenhum lugar do mundo existem 6 milhões de pessoas sitiadas. Em nenhum lugar", afirmou Tedros. "A única coisa que pedimos é: o mundo pode voltar à razão e defender a humanidade?"
A fala veio quando ele comentava a invasão russa da Ucrânia. Tedros afirmou que o mundo pode estar a caminho de uma guerra nuclear que ameaça ser "a mãe de todos os problemas", mas completou que, em termos de crise humanitária, a situação no Tigré atualmente é pior.
Nesse sentido, ele pediu aos governos da Etiópia e da Rússia que ponham fim às duas crises. "Se querem paz, podem fazê-la acontecer, e apelo a ambos para que resolvam esses assuntos."
Em abril deste ano, o chefe da OMS já havia questionado se o foco desmesurado do mundo em direção à guerra travada pela Rússia tinha motivações racistas, mas reconheceu que o conflito na Ucrânia tem consequências globais.
Em relação a seu país, Tedros criticou a guerra e a crise humanitária no Tigré diversas vezes. No início do ano, o governo da Etiópia chegou a enviar uma carta à OMS acusando seu chefe de má conduta devido às críticas.
Segundo as autoridades da nação africana, Tedros usaria o cargo para se projetar politicamente às custas da Etiópia e seria membro da Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF). Tedros, que foi ministro do Exterior e da Saúde quando a TPLF liderava a coalizão de governo etíope, nega a acusação.
Histórico do conflito
Em novembro de 2020, o primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, enviou tropas do exército para, com a ajuda de forças da Eritreia, desalojar as autoridades rebeldes do Tigré. Inicialmente derrotados, os rebeldes recuperaram o controle da região em junho de 2021.
Desde então, o conflito tem tido pouca ajuda humanitária internacional. Provedores de ajuda humanitária, médicos e enfermeiros relatam que há pessoas morrendo de fome e que faltam mantimentos básicos para tratar os doentes.
A ajuda se intensificou nos últimos meses, mas tem sido classificada como inadequada para suprir as necessidades da população sitiada. Segundo informações de grupos humanitários, a região continua a sofrer com a falta de combustível, o que impede o transporte de bens.
Símbolo do isolamento da região, a campanha de vacinação contra a covid-19 foi lançada só em julho deste ano – ainda assim um avanço em comparação com os meses difíceis em que feridos eram tratados com água morna e sal.
A volta de serviços básicos e da atividade bancária continua uma das principais demandas de lideranças do Tigré. Jornalistas são impedidos de adentrar a região.
O conflito na Etiópia tem implicações sérias para além de suas fronteiras nacionais, podendo contribuir para desestabilizar a região – o país faz fronteira com Sudão, Sudão do Sul, Uganda, Quênia, Somália, Djibuti e Eritreia.
Os dois lados do conflito têm sido acusados de abusos pela Organização das Nações Unidas.
Negociações de paz
A porta-voz do governo etíope reagiu às declarações de Tedros, classificando-as de antiéticas. Ela também acusou líderes no Tigré de procurar pretextos para evitar um acordo de paz.
Na quarta-feira, o ministro do Exterior da Etiópia anunciou haver uma proposta que levaria ao cessar-fogo e à retomada de serviços essenciais.
Em resposta, o porta-voz das forças rebeldes no Tigré, Getachew Reda, escreveu no Twitter que "o regime de Abiy Ahmed deixou bastante claro que não está disposto a entrar em negociações de paz".
O governo etíope tem insistido para que as negociações de paz sejam lideradas pelo enviado da União Africana. O gesto é visto como um sinal de rejeição a outros esforços de paz encabeçados pelo Quênia com apoio dos Estados Unidos.
ra/ek (AP, Lusa)