CNV revela como ditadura perseguiu homossexuais
10 de dezembro de 2014"Apaixonei-me pelo país. Era para ficar seis meses... fiquei seis anos". A estada de James Green no Brasil, em 1976, seria curta. O historiador norte-americano já se articulava nos Estados Unidos para denunciar a tortura praticada pelo regime militar. Ao chegar ao país, se engajou nos primeiros grupos de resistência gay à ditadura.
Green, que hoje é brasilianista da Universidade Brown (EUA), integrou o Grupo Somos, em São Paulo, um espaço de luta homossexual contra a repressão. Um ato em frente ao Teatro Municipal em junho de 1980 marcou a primeira mobilização do gênero no país e deu as bases para a criação do Movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros).
"A repressão não era apenas contra as organizações da esquerda. Uma questão principal era abafar o surgimento de novos movimentos sociais. Se não houvesse o AI-5, o movimento LGBT teria surgido antes", conta.
Green quase foi preso naquele ano no centro de São Paulo por policiais comandados pelo delegado José Wilson Richetti, chefe da Seccional de Polícia da Zona Centro. Eles faziam "operações de limpeza" em locais do centro histórico frequentados por travestis, prostitutas, lésbicas e gays. Invadiam bares, boates, saunas e cinemas e levavam homossexuais para averiguação na delegacia, onde eram extorquidos e até violentados.
"Esses fatos mostram que, além da repressão política padrão, também houve um contorno moral e sexual à violência de Estado nesse período", afirma o advogado Renan Quinalha, integrante da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo.
Perseguições
Quinalha e Green são os organizadores do livro Ditadura e homossexualidade: Repressão, resistência e a busca da verdade, lançado em novembro. Parte do material integra o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que é entregue nesta quarta-feira (10/12) à presidente Dilma Rousseff.
Uma seleção de nove textos mostra as diferentes facetas da perseguição contra homossexuais, como a censura à produção cultural. No Rio de Janeiro, os editores do jornal Lampião da Esquina, fundado por gays e para gays no final dos anos 70, foram alvo constante de perseguição. A escritora lésbica Cassandra Rios, que abordava a temática do desejo homoerótico, teve 36 livros proibidos.
"Queremos revelar novas realidades do que foi o regime militar. Recuperamos parte dessa história da ditadura, que foi marginalizada e esquecida", explica o historiador da Universidade Brown.
O livro aponta como a censura se capilarizou nos órgãos públicos. Em 1969, sete diplomatas brasileiros foram expulsos do Itamaraty sob a justificativa de "prática de homossexualismo" e "incontinência pública escandalosa". O Ministério das Relações Exteriores chegou a recomendar que fossem feitos exames psiquiátricos e proctológicos no processo de admissão de novos diplomatas para evitar a entrada de homossexuais.
Para Quinalha, o fechamento dos canais de organização impediu denúncias e a implantação de um sistema de monitoramento das violências sofridas por homossexuais. Segundo ele, políticas públicas para combater esses problemas ficaram atrasadas, e há reflexos até hoje.
Relatório
Entre as medidas institucionais propostas pela CNV está a alteração de um artigo do Código Penal Militar, de 1969, que estabelece como crime a prática ou permissão de "ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar". Para a comissão, o texto revela "discriminação" contra homossexuais nas Forças Armadas.
O relatório também pede a criminalização da "homolesbotransfobia", a aprovação de uma lei que garanta a "livre identidade de gênero", pedidos de desculpas oficiais do Estado pela violência sofrida pelo público LGBT durante a ditadura, reparação às pessoas perseguidas e esclarecimentos dos agentes públicos envolvidos nas denúncias.
Outro ponto importante é a revogação da denominação "Dr. José Wilson Richetti" dada à delegacia chefiada por Richetti, responsável pelas "operações de limpeza" no centro de São Paulo.
"O Estado era conivente seja por ação, seja por omissão, quanto à violação de direitos sofrida pelo público LGBT", afirma Quinalha. "A Comissão Nacional da Verdade não é um ponto final, mas um ponto de partida para aprofundarmos a democratização da sociedade brasileira."