Como a polícia alemã tem aprendido a enfrentar o seu racismo
9 de outubro de 2020"Qual é a cor de seus olhos?", pergunta Seyda Buurman-Kutsal.
"Castanho."
"Ah, então está tudo certo com você."
E assim começa a lição sobre racismo. Buurman-Kutsal é instrutora da Diversity Works, uma organização que oferece treinamento de conscientização sobre racismo e que, nos últimos meses, tem recebido muitas ligações das forças policiais alemãs.
Uma simples questão sobre a aparência, explica a instrutora, pode irritar as pessoas, pois muda instantaneamente a dinâmica de uma interação. De repente, há julgamento no ar.
Essa é a enganosamente óbvia premissa do exercício de olhos azuis/olhos castanhos, uma lição desenvolvida em 1968 pela professora americana Jane Elliott que se tornou um elemento essencial no treinamento sobre diversidade.
O exercício consiste em dividir a sala em um grupo de olhos castanhos e um grupo de olhos azuis e, em seguida, atribuir privilégios especiais às pessoas de olhos castanhos. O resultado, após algumas difíceis confrontações, é que os potenciais recrutas da polícia sentem na pele como é a discriminação e acabam assim confrontados com o próprio racismo e entendendo como os mecanismos de privilégio e exclusão afetam seu modo de pensar.
"O exercício mostra como é fácil fazer parte disso sem nem mesmo perceber", diz Buurman-Kutsal, uma alemã de origem turca que leciona na Holanda e na Bélgica e que se especializou em treinamento intercultural para jovens.
Há diferentes modalidades, mas o workshop que ela oferece para cadetes da polícia no estado de Schleswig-Holstein dura uma semana inteira de 8 horas diárias. Ele cobre muitos assuntos e aborda desde a real função da polícia até perfis étnicos e como lidar com outros policiais que fazem comentários racistas.
"Nem sempre é fácil, porque lidamos com uma polícia que tem uma cultura de corporativismo – e isso vale não só para a Alemanha –, o que torna muito difícil para os policiais se confrontarem uns aos outros", diz a instrutora.
Escândalos recorrentes
Não é difícil ter uma ideia de como isso é importante na Alemanha: a batalha da polícia contra o racismo e contra a simpatia pela extrema direita em suas fileiras se tornou cada vez mais notória nos últimos meses, à medida que histórias desagradáveis surgiram na imprensa.
Na semana passada, a polícia de Berlim foi forçada a admitir erros numa investigação sobre uma onda de crimes de extrema direita no distrito berlinense de Neukölln, com as vítimas reclamando que os principais suspeitos – três neonazistas conhecidos – se sentiam seguros o suficiente para insultar publicamente os policiais que os mantinham sob vigilância.
Uma semana antes, a polícia de Essen, no estado da Renânia do Norte-Vestfália, foi criticada por publicar um folheto de treinamento sobre o crime organizado árabe na região que supostamente incluía uma série de calúnias racistas. De acordo com o jornal Die Welt, o manual de 20 páginas informava aos cadetes que os membros dos "clãs" árabes tinham medo de cachorros e consideravam as policiais do sexo feminino "fatores provocativos". A polícia de Essen disse não ver razões para não utilizar o documento e que ele refletia os resultados de um estudo acadêmico.
Ainda mais alarmante foi a experiência do ex-cadete da polícia Simon Neumeyer, que disse à DW que deixou a academia policial na Saxônia por ter ficado chocado com o racismo escancarado durante o curso. Um instrutor de tiro teria dito a ele: "Precisamos aprender a atirar melhor porque há muitos refugiados vindo para a Alemanha." Em resposta, a polícia da Saxônia disse que não encontrou "nenhuma evidência de comportamento não profissional" no caso.
Um problema mais amplo
O caso que provocou a maior repercussão nacional foi a descoberta de cinco grandes grupos de chat de policiais de extrema direita na Renânia do Norte-Vestfália que compartilhavam pelo WhatsApp fotos de Adolf Hitler e imagens de requerentes de asilo em câmaras de gás.
O caso resultou na suspensão de 29 agentes, mas não levou o ministro do Interior da Alemanha, Horst Seehofer, a mudar de ideia sobre impedir um estudo sobre perfilamento racial (racial profiling) na polícia de todo o país. Perfilamento racial é proibido, justificou, e, de qualquer maneira, o caso mostra que a polícia está ativamente se livrando das "maçãs podres", disse.
De acordo com alguns críticos, a percepção externada por Seehofer reflete um problema mais amplo: a negativa de vincular casos flagrantes de racismo a um problema mais profundo e disseminado na cultura policial e apresentá-los como casos isolados.
Mas Buurman-Kutsal argumenta que as coisas estão mudando. "No momento, a Alemanha não pode se esquivar da questão e, sem dúvida, o país passa por uma reforma", disse. "Há oito anos, quando comecei a trabalhar com a polícia na Holanda, isso definitivamente não fazia parte da agenda na Alemanha."
"Não saberia dizer se a polícia na Alemanha tem uma cultura fundamentalmente de extrema direita – acho que não. Mas com certeza, ela tem um problema de extremismo de direita", acrescentou. "Mas acho que pouquíssimos falam sobre isso, e essa é a raiz do problema. Certamente não são casos isolados. Sabemos através de muitos policiais que é difícil enfrentar a questão."
Na Alemanha, onde existem 17 forças policiais distintas – uma em cada um dos 16 estados e mais a força federal –, o treinamento sobre diversidade está longe de ser um padrão: enquanto a polícia de Berlim vem treinando antidiscriminação desde 2009, e Schleswig-Holstein também tem adotado a "competência multicultural" no treinamento básico da polícia, outros estados sequer tratam do assunto formalmente. Neumeyer conta que, quando ele frequentou a academia na Saxônia, a questão certamente jamais foi levantada.
Mas Buurman-Kutsal diz que forças policiais de outros estados têm entrado em contato com a Diversity Works, incluindo a Saxônia. "É um processo em andamento – eles estão pensando muito em como treinar os agentes em torno da questão do racismo", disse. "Mas ainda não é algo comum."
E há evidências de interesse na base. Ela conta que houve casos de policiais que foram aos workshops por conta própria, e alguns dos cadetes da polícia em Schleswig-Holstein que fizeram o exercício da cor dos olhos até pediram mais algumas dicas após o término do curso.