Como ancestrais indígenas se preveniam de epidemias
5 de maio de 2020Historicamente vítimas de doenças trazidas pelo "homem branco", povos indígenas brasileiros podem mirar no passado para sobreviver à pandemia da covid-19, em um momento em que a Amazônia é um dos epicentros da doença. Desde os primeiros contatos com europeus, muitos povos indígenas recorreram ao isolamento social para se proteger de epidemias – justamente a estratégia hoje adotada mundialmente como a mais eficaz para o combate ao novo coronavírus.
"Diante daquelas epidemias do passado, os nossos especialistas de proteção e cura de doenças não tinham muito a fazer. Meus avós benzedores diziam que, diante das epidemias, se sentiam impotentes, pois não sabiam as raízes das doenças, não sabiam que tipos de seres causavam essas doenças", conta à DW Brasil o padre Justino Sarmento Rezende, indígena do povo Tuyuka, morador do município de Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas. "Por isso, eles se retiravam das comunidades para viver em lugares mais afastados até que passasse a epidemia."
Ou seja: na falta de medicamentos adequados, a regra era o isolamento. Rezende se recorda de que, quando era criança, no início dos anos 1960, houve uma epidemia de coqueluche que matou muitas crianças na região. "Minha irmã mais velha morreu. Eu consegui escapar. As famílias iam para acampamentos mais distantes para se proteger", lembra.
"Penso que no atual quadro de pandemia, nós, indígenas, podemos oferecer inspiração por resistirmos há mais de 500 anos de doenças, genocídios, etnocídios e ecocídios sem desistirmos de nossos sonhos na busca pelos territórios ancestrais e por alteridade", diz à DW Brasil o historiador Carlos José Santos, também chamado de Casé Angatu Xucuru Tupinambá (em alusão a suas raízes indígenas), professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), na Bahia.
Pesquisador de etnologia indígena e professor da Universidade de São Paulo (USP), o antropólogo Pedro de Niemeyer Cesarino ressalta à reportagem que, "ainda que não tivessem como evitar a mortandade", os povos indígenas "sempre tiveram suas estratégias de proteção”. "Em geral, elas consistem em tentar escapar de centros de contágio, quando havia a percepção de que isso era possível. O isolamento em áreas de difícil acesso da floresta, por exemplo, era e é uma opção praticada ainda nos dias de hoje", exemplifica.
Os xamãs sempre tentaram compreender o que eram essas novas doenças, a fim de tratá-las a partir de suas técnicas e conhecimentos, mas, com o tempo, entretanto, muitos começaram a perceber que as "doenças dos brancos" eram distintas e demandavam cuidados diferentes daqueles que podiam ser realizados com seus conhecimentos, aponta o antropólogo.
"O que chamamos de isolamento social não foi praticado apenas no passado. Ele é uma estratégia ainda hoje corrente, que está sendo utilizada agora na proteção à covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus. No entanto, não se trata exatamente de um isolamento social, mas de uma evitação da vida em comunidades situadas nas margens de rios navegáveis e de contato mais fácil com cidades", afirma.
"Muitas vezes, famílias inteiras sobem para a direção das cabeceiras de rios e reformulam os seus modos de existência. Passam a viver de maneira similar à de seus antepassados, o que implica também a produção de novos corpos que sejam mais fortes e, ao mesmo tempo, mais sábios para lidar com os desafios provocados pela iminência do genocídio."
Para a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP, os saberes herdados das populações indígenas brasileiras devem ser preservados como "vestígios de uma cultura secular, única, um instrumento importante de combate as epidemias". "Seus conhecimentos sobre a flora e fauna curam doenças do corpo e da alma, nem sempre valorizados pelos homens da ciência", diz.
Tulio Chaves Novaes, promotor de Justiça, professor e pesquisador da Universidade Federal do Oeste do Pará, considera que é preciso humildade para "efetivar esse aprendizado" com o os povos indígenas. "Penso que o aprendizado mais relevante, ensinado atemporalmente por esses povos, massacrados pela ganância e pelo poder de uma razão instrumental ocidental soberana, encontra-se na ética", pontua.
"A atitude do indígena aponta sempre para o bem-estar e para a preservação do grupo, para sua relevância frente ao indivíduo. Visto como um todo, desta maneira, na lógica do grupo, o destino de um é o destino do outro. A preocupação com o coletivo, ao ponto de justificar o sacrifício individual, talvez enseje outro parâmetro educativo ético que precisamos resgatar com a história desses povos. Se tivéssemos em mão hoje esse patrimônio moral, sem dúvida, seria mais fácil fazer frente aos inimigos comuns, como o atual coronavírus", considera.
Doenças que varreram vidas
Segundo o pesquisador Paulo Rezzutti, membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, padres jesuítas relataram que entre 1554 e 1584 morreram mais de 60 mil indígenas em decorrência de epidemias trazidas pelo "homem branco". "Eram principalmente sarampo e varíola as doenças", aponta ele à DW Brasil. "E já havia um colapso funerário. Algumas tribos chegaram a ter 20 mortos por dia."
Se no passado varíola e sarampo eram as principais vilãs, na era contemporânea, muito antes do novo coronavírus, os indígenas já sofriam com malária e hepatite. "São duas das maiores responsáveis por óbitos em sociedades indígenas", aponta Cesarino. "Eu mencionaria também a desnutrição e o diabetes que, no caso de algumas comunidades, também precisam ser consideradas como doenças impostas pela sociedade envolvente."
De acordo com os antropólogos Marta Rosa Amoroso e Rafael Pacheco, respectivamente coordenadora científica e pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da USP, "sarampo, varicela, varíola, malária, coqueluche, gripes, desnutrição, diabetes, pressão alta e diarreia estão entre as doenças que mais acometem os povos indígenas, histórica e atualmente".
À DW Brasil, Pacheco pontuou que "os casos de depopulação e extermínio massivos ocorridos nessas circunstâncias são emblemáticos na história do Brasil republicano, e seguem até hoje sem uma reparação minimamente adequada".
Ele recorda registros históricos, como "o relato perplexo” do padre jesuíta José de Anchieta (1534-1597) "diante da amplitude e rapidez da mortandade de milhares de tupis na Baía de Todos os Santos”. "Varíola e sarampo, nesse período [século 16], varriam vidas em diversas regiões", afirma. E o cenário prosseguiu.
Mais tarde, no século 17, com as entradas bandeirantes, "os grupos tupi-guarani da região de Guaíra foram assolados por contaminações", aponta o antropólogo. "Isso segue pelos século 18, 19 e atravessa o século 20. No começo da década de 1970, a mortalidade infantil ainda no primeiro ano de vida no Parque Indígena do Xingu chegava a 10%."
"Lembro alguns casos, por exemplo, ocorrências durante a construção da rodovia Transamazônica, quando após o contato, em 1981, os indígenas foram abatidos por uma epidemia de gripe, provocando a morte coletiva e a dizimação dos grupos", completa Tucci Carneiro. "Deve ser também contabilizada a omissão do Estado que não prestou socorro."
A covid-19 é um desafio novo e complexo, que pode ter amplitude local, em uma etnia ou mais ampla, abrangendo complexos socioterritoriais e regiões.
"O município indígena de São Gabriel da Cachoeira no Amazonas, por exemplo, neste momento luta pela instalação de um hospital de campanha equipado que possa atender a população indígena. No momento os indígenas são deslocados para os hospitais em Manaus, cidade cujo sistema único de saúde já se encontra em colapso. A previsão pessimista é que a situação se espalhe diante de uma falta de ação", diz Pacheco. "Relatos de lideranças e pesquisadores indígenas e indigenistas, de diferentes regiões, têm destacado que o isolamento social vem sendo praticado para impedir a entrada do vírus nos territórios indígenas."
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