Como jovens da Amazônia veem o legado de Chico Mendes
22 de dezembro de 2023Jovânia de Sousa, 14 anos, é a única dos sete irmãos que permanece na Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre. Nascida e criada na comunidade Dois Irmãos, ela percorre com o pai os seringais, onde recolhe o látex que escorre pelos caminhos forjados na casca da árvore até o potinho fixado no tronco.
"Amo viver na floresta. Não pretendo ir embora daqui nunca", diz Jovânia à DW, em frente à escola que frequenta na própria comunidade, onde vivem 38 famílias.
Foi ouvindo o relato dos mais velhos que a adolescente se apegou mais ao lugar. Na comunidade ainda vivem lideranças que defenderam, a partir da década de 1970, ao lado de Chico Mendes, as seringueiras da Floresta Amazônica.
As árvores nativas eram a base do sustento de milhares de famílias que extraíam látex para produção de borracha natural. Incentivados pelo regime militar, pecuaristas vindos do Sul e Sudeste tentavam ocupar as terras à força e transformar tudo em pasto.
"Sei que para montar esta área de mata, que até hoje está sendo preservada por nós, foi uma luta bem grande entre seringueiros e fazendeiros. E que Chico Mendes lutou até seu último dia", diz Jovânia.
Em 22 de dezembro de 1988, Chico Mendes foi assassinado na porta de sua casa em Xapuri (AC) por Darci Alves, a mando de seu pai, o fazendeiro Darly Alves. Um ano antes, Mendes havia recebido o prêmio Global 500, um reconhecimento da Organização das Nações Unidas a defensores do meio ambiente.
O acesso irrestrito aos seringais e a preservação da floresta, como defendia o ambientalista, só foi garantido em 1990, com a criação da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes. Era a estreia de um novo modelo de reforma agrária na Amazônia, com a distribuição de famílias por "lotes" de vegetação.
Trinta e cinco anos depois daquele crime brutal, os antigos companheiros do ambientalista se preocupam com a sucessão das lideranças dentro da reserva, que viveu uma explosão de desmatamento e pecuária nos últimos anos.
"A gente depende muito da juventude. Eles passam por um processo de muitas dúvidas sobre o que representa o território para eles. É um desafio para todos nós, já que os interesses econômicos são muito grandes", comenta Julio Barbosa, atual presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).
Violência, estupro e empates
Espalhada por sete municípios ao sul do Acre, a Resex Chico Mendes tem quase 10 mil quilômetros quadrados de extensão. Ninguém sabe ao certo quantas famílias se beneficiaram de imediato com sua criação. Atualmente, estima-se que 4 mil vivam dentro de seus limites.
Osmarino Rodrigues, 69 anos, está lá desde o começo. Ele participou da resistência e organização dos seringueiros ao lado de Chico Mendes. Depois do assassinato, Osmarino ficou 42 dias em Brasília aguardando a assinatura do decreto que criaria a área protegida, o que ocorreu nos últimos dias do governo de José Sarney, em março de 1990.
"Enquanto não criamos a reserva, a gente não tinha sossego. Quando criamos, os fazendeiros se afastaram porque tinham que enfrentar não só a gente, mas o Estado", diz Osmarino à reportagem, durante uma caminhada por Xapuri.
A violência do passado deixou marcas. Osmarino viu homens que trabalhavam para os fazendeiros queimarem casas, amarrarem os seringueiros e estuprarem suas esposas e filhas.
"Na época, tomei a decisão de não me casar. Porque eu tinha medo de eles pegarem filha minha, mulher minha. Fizemos uma discussão interna com a juventude para pensar sobre isso", afirma, emocionado.
Pedro Teles, 73 anos, testemunhou muitos daqueles acontecimentos. Ele lembra que ficou preso uma semana depois de participar de um "empate", no fim da década de 1970. Os empates eram como os extrativistas chamavam os bloqueios humanos que criavam nas áreas com desmatamento em curso. Mobilizadas por Chico Mendes, famílias caminhavam por dias na mata na tentativa de convencer os trabalhadores que cortavam a vegetação, a mando de fazendeiros, a pararem o serviço.
"Hoje em dia está difícil levar esse legado adiante, a cultura está mudando. Quem produz borracha são os mais antigos. Os mais novos, muitos, querem criar boi, muitos tocam gado para os fazendeiros", diz Pedro.
Na noite do assassinato de Chico Mendes, Pedro saiu de Xapuri a pé e caminhou longas horas para dar a notícia da tragédia às comunidades que viviam nos seringais.
"Precisa um trabalho de muita cautela para que os jovens reconheçam que eles moram na reserva por causa de nós, por nossa luta. Senão só teria pasto e não teria ninguém com direito de viver lá", analisa.
A disputa pela juventude
Laiane da Costa Santos, 31 anos, enfrenta o desafio. Ela é uma das novas lideranças que ajudou a fundar o coletivo Varadouro, formado por jovens moradores da reserva para que eles ocupem espaços de tomada de decisão e influenciam o futuro do território.
"Muitos até sabem sobre Chico Mendes, mas não sabem por que eles moram dentro da unidade de conservação. Estamos fazendo o trabalho de formiguinha de levar essa informação para ver se, depois de informados, eles conseguem enxergar o tesouro onde vivem", diz Laiane à DW.
Parte considerável sai para estudar e não retorna. Outros são aliciados por facções criminosas que usam o território como corredor de escoamento de drogas que saem da Bolívia, disseram fontes ouvidas pela DW.
André Maciel, 22 anos, integra o coletivo Varadouro e é um dos membros do Conselho Deliberativo da Resex Chico Mendes. Ele ajudou a definir os parâmetros sobre qual perfil de morador é aceito pela comunidade, que se encaixa na definição de extrativista.
"Quero construir um futuro para a reserva de acordo com o que foi pensado pelos criadores dela. Eles pensavam em garantir o território para eles e para as gerações futuras, que somos nós. E também dignidade", defende André.
Para ele, além do extrativismo, haveria espaço para agroflorestas e pecuária de pequeno porte. "Se a gente tiver uma assistência técnica, linhas de financiamento voltadas à produção sustentável, a adesão da juventude vai ser imensa", diz.
A situação no momento, segundo André e seu pai, Anacleto Maciel, um dos pioneiros, saiu do controle. "Teve muito desmatamento e muita impunidade", resume Anacleto.
"Retomar o território"
Por se tratar de uma unidade de conservação federal, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) participa da gestão. O órgão tenta retomar as rédeas depois de anos de desmonte sob o governo de Jair Bolsonaro.
Em 2019, durante uma visita à reserva extrativista, o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, incentivou os comunitários a derrubarem a mata e a migrarem para a pecuária, relembram moradores à DW. O gestor do ICMBio no local à época chegou a ser exonerado após uma operação para retirada de gado de dentro da unidade.
O reflexo do incentivo oposto ao propósito da unidade de conservação apareceu logo. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontaram um salto no desmatamento dentro da reserva em 2019, que chegou a 76 km², um aumento de 262% em relação a 2018. O cenário seria pior nos anos seguintes, com 88 km² destruídos em 2021 e 83 km² em 2022.
"A ideia é reconstruir a fiscalização e retomar o território", afirma Marcos Mesquita, gestor atual do ICMBio.
Segundo Mesquita, os agentes se deparam com situações tensas na rotina, como a que envolveu a reintegração de posse de uma área dentro da reserva onde uma servidora pública ocupou para manter um haras.
"Nós fazemos a investigação ambiental. Mas pode acontecer a expulsão das pessoas que estão lá dentro e que não têm o perfil de morador de uma reserva extrativista. Mais cedo, ou mais tarde, isso pode acontecer por decisão judicial", comenta o gestor do ICMBio.
"Teve um governo do estado e federal que incentivaram o desmatamento. Tem fazendeiro oferecendo algumas cabeças de gado para desmatar e arrendar o pasto. Resultado: hoje, quem desmatou demais está enrolado na lei", diz Anacleto Maciel, que faz poesias sobre a rotina dos extrativistas.
Em busca do jovem do futuro
Quando Chico Mendes foi assassinado, a filha mais velha dele, ngela Mendes, estava grávida. O ambientalista morreu sem saber que seria avô. A neta, Angélica Mendes, nasceu em setembro de 1989.
"O 'empate' do século 21 necessita da presença e do engajamento dos jovens e de quem tem uma consciência ambiental. Isso passa pelo debate político. As dificuldades que enfrentamos nos últimos anos vieram justamente por elegermos quem sempre violou os direitos das populações da Amazônia", diz Ângela Mendes à DW.
À frente do Comitê Chico Mendes, ela mantém a tradição de organizar uma semana de atividades em memória do pai, em defesa dos povos da floresta e da Amazônia.
Angélica Mendes, doutora em Ecologia, deixou de lado uma promissora carreira acadêmica para defender o legado do avô. Vendo o cerco do agronegócio, ela decidiu se voltar para o Acre e trabalhar com a geração que vai suceder os pioneiros.
"A carta que meu avô deixou ao jovem do futuro nos inspirou muito. A gente tenta fortalecer a juventude trazendo para perto os companheiros do meu avô, o que eles fizeram para conquistar o território. E a gente está pautando o futuro a partir disso", diz ela à DW.
O objetivo, afirma, é mostrar a importância dos povos da floresta para o mundo, o quanto a juventude que cuida de lugares como a Resex Chico Mendes é parte da solução para a crise climática. E que, para permanecer, os jovens precisam de apoio e renda digna.