Aqui em terras brasileiras, o tempo mudou de velocidade desde o último dia 2 de outubro. Vivemos desde então em um compasso de espera agonizante e angustiante, tendo que lidar com um país escancarado, onde não só o rei está nu, todos nós estamos.
Minha sensação é a de que, de uma só vez e num espaço de quatro semanas, o Brasil agudizou todas as suas amarras e violências historicamente construídas, seguindo como um aluno exemplar a cartilha do fascismo, com a particularidade desse fascismo estar sendo semeado em terras racistas.
A ofensiva contra as instituições democráticas – que não é exatamente uma novidade por aqui – ganhou novas proporções. Numa das tentativas de "furar minha bolha", assisti a um dos muitos vídeos que atacam diretamente o Supremo Tribunal Federal (STF), e a pergunta que ficou martelando na minha cabeça foi: "Como o Brasil chegou a esse ponto?"
E não para por aí.
A propagação de fake news alterou de maneira quase revolucionária a gramática da política brasileira, coroando outra questão que não é de hoje: a relação que boa parte dos brasileiros está estabelecendo com o conhecimento. Não me refiro apenas à precarização dos professores e instituições de educação. Os ataques à ciência e ao saber científico seguem a galope, e são responsáveis não só por parte significativa das quase 700 mil mortes por covid (muitas das quais poderiam ter sido evitadas, caso a compra de vacinas tivesse sido feita de forma responsável), mas também pela volta de doenças como a poliomielite e o sarampo, que podem ser letais para as crianças. Pais e mães estão optando por não vacinar seus filhos, num país que construiu uma ampla, eficiente e gratuita carteira vacinal, reconhecida mundialmente.
O uso da máquina pública para compra de votos foi ressignificado, tendo como justificativa os males deixados por uma pandemia que, durante seus momentos mais críticos foi vista e tratada como uma "gripezinha". Temos a criação de um orçamento secreto, que provavelmente encobre um dos maiores esquemas de corrupção já vistos, além de comprometer todo o ano fiscal de 2023, independentemente de quem ganhar as eleições.
E o racismo? Parece que nunca foi tão bom ser racista no Brasil. As chacinas se mantêm como prática constante na dizimação da população negra. Senhoras brancas berram em seus prédios que não querem entrar no mesmo elevador que seus vizinhos negros. Comerciantes brancos se recusam a atender mulheres negras. Clubes recreativos xingam de macaco um dos grandes cantores deste país e ainda se sentem no direito de processá-lo por ter fumado perto do palco. Um ex-parlamentar brasileiro faz uso do privilégio de ser um homem branco, e não só decide descumprir o mandado de prisão expedido pelo STF, como atira e joga granadas na Polícia Federal. Tudo isso, à luz do dia.
E aquela pergunta volta: "Como o Brasil chegou a esse ponto?"
O Brasil está em crise
Parte da resposta para essa pergunta encontrei revisitando um dos livros magistrais da historiadora Emília Viotti da Costa: "Crises são momentos de verdade. Elas trazem à luz os conflitos que na vida diária permanecem ocultos sob as regras e rotinas do protocolo social [...] Nesses momentos expõem-se as contradições existentes por trás da retórica da hegemonia, consenso e harmonia social."
O Brasil está em crise, e estamos experimentando verdades da nossa vida social que não são novidades, mas que estão articuladas de uma maneira especialmente assustadora. Essa crise não vai desaparecer de forma milagrosa após o dia 30 de outubro de 2022, mas podemos direcionar os caminhos que queremos trilhar em meio a ela.
É justamente por isso, é preciso dizer, que as verdades acima expostas não são as únicas deste Brasil em crise.
Ainda há horizonte
Nas miudezas da vida, pude observar muitas verdades nestes dias que não acabam nunca. Vi trabalhadores do mercado popular sussurrando que, apesar das coerções de seus patrões, votaram a favor da democracia. Também vi o Salão Nobre (e todos os seus fantasmas) da mais antiga universidade pública brasileira aplaudir de pé um casal negro octagenário, que estava assistindo a brilhante palestra de sua filha, uma intelectual negra internacionalmente reconhecida. Ouvi áudios deliciosos, de mulheres evangélicas se recusando a votar no candidato de seus pastores, reafirmando seu compromisso com o exercício da cidadania e dos ideais republicanos. Vi muita gente na rua, se mobilizando pacífica e respeitosamente para conversar com indecisos e indecisas, lembrando que o importante é votar nestas eleições.
E também vi um homem, que completa 77 anos nesta quinta-feira (27/10), reunir ao seu redor uma aliança política que, até pouco tempo atrás, parecia quase improvável.
Luiz Inácio Lula da Silva é, para mim, um dos maiores nomes da nossa história. Uma parte latente deste Brasil escancarado. Um homem de trajetória singular em um país cujas elites insistem em fazer da pobreza sua massa de manobra, e que pagou caro por sua ousadia. Um trabalhador brasileiro que teve como seu primeiro diploma o de presidente do Brasil. Que tirou o país do mapa da fome, fez do Brasil a sétima economia mundial, aumentou o número de universidades públicas, reconheceu o papel central da cultura no exercício da cidadania.
Neste país escancarado e organizado por violências atrozes, ainda há horizonte. E a melhor forma de vislumbrá-lo é nos juntando a quem defende a democracia.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
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