Como unir os cacos do país em 2023?
31 de dezembro de 2022Da ascensão de uma raivosa extrema-direita a uma pandemia com 700 mil mortos, da crise econômica periclitante à eliminação precoce na última Copa do Mundo, da profusão de fake news à um processo eleitoral intenso com resultado quase meio a meio, não tem sido nada fácil ser brasileiro nos últimos tempos.
Mas é fim de ano, famílias precisam passar a régua nas rixas ao menos para garantir uma ceia natalina em paz e, bem, há sempre aquele desejo de deixar os problemas e as rusgas para trás na virada do Ano Novo. A DW Brasil ouviu especialistas de diversas áreas para tentar entender como o Brasil pode ser unido novamente, nem que seja sob os auspícios do bem comum.
Autor do livro Sonho Manifesto, o neurocientista Sidarta Ribeiro, fundador e professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte acredita que a solução para a união nacional seja "um projeto de país centrado na igualdade de oportunidades”. E que isso ocorra por meio de "um sistema público-privado de alta qualidade em educação, saúde, ciência, cultura, esporte e meio ambiente”.
"Ou o Brasil se firma no século 21, ocupando a vanguarda da agenda socioambiental, ou será cada vez mais o país de Fitzcarraldo, Faroeste Caboclo, Belo Monte, assassinatos de Bruno Araújo e Dom Phillips, do povo Yanomami destroçado", comenta ele.
Em sua opinião, não será nada fácil juntar os cacos da nação esfacelada. "Ainda temos pela frente um embate duro com o fascismo, o racismo, o machismo, a homofobia, o anticientificismo e as outras forças de destruição da sociedade brasileira, do Estado de Direito e da soberania nacional que se manifestaram com nitidez no desgoverno Bolsonaro", acrescenta.
"E também temos pela frente o desafio de focar as energias naquilo que realmente interessa: a qualidade de vida do povo, a qualidade da educação das crianças e jovens, a interrupção da devastação ambiental, a regeneração socioambiental, o cultivo de nossa incríveis capacidades culturais multiétnicas."
Ribeiro crê que com a saída de Jair Bolsonaro do poder o discurso extremista começará a perder espaço. "Acredito que o fascismo insuflado por seus discursos chegou ápice a agora tende a refluir, pois a luta popular nas ruas e as instituições jurídicas brasileiras começaram a funcionar com eficácia para conter seu avanço", diz. "Temos pela frente um longo processo de apaziguamento das tensões, mas o tempo agora corre a favor da paz, da harmonia e do amor entre os diferenntes".
Educação e política
Para o psicólogo e psicoterapeuta Ari Rehfeld, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e na Universidade Cruzeiro do Sul, a chave também passa pela educação. "A união se dará de modo muito lento, com a aceitação da diversidade, a possibilidade de respeitar uma opinião diferente da minha. Será pela educação, diante da destruição em velocidade causada pelas fake news", argumenta.
Ciente de que se trata de um processo longo, ele recomenda um paliativo de curto prazo: que as famílias façam pactos de não discutir política partidária. "Porque tivemos um desastre, com muitas famílias se despedaçando e se separando por conta de diferentes visões ideológicas. A única alternativa é fazer esse combinado", afirma. "Todo ser humano é político, toda fala humana é política. Mas estou falando sobre política partidária, em nome da sobrevivência das relações."
De forma geral, ele se diz "pessimista e otimista simultaneamente". "A curto prazo, pessimista, porque acho que isso envolve uma educação de longo prazo. Mas no futuro eu acredito em uma situação melhor. Algo que eu não enxergarei em vida, mas talvez meus netos…", afirma.
Pesquisador no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, o jornalista, economista e cientista político Bruno Paes Manso, acredita que a união do país virá justamente da política. Mas uma política que recupere a importância do debate, do diálogo — em detrimento da "lacração" que se tornou preponderante nos últimos anos.
"O que pode unir novamente o país é o desafio de construir um projeto político que dialogue com a maioria da população, pessoas de centro, pessoas de centro-direita e de centro-esquerda, pessoas de direita e de esquerda", enumera ele. "Na medida do possível, que esse projeto contemple os valores e os sonhos da maioria."
Ele lembra que é papel da política "o diálogo, a conversa permanente" que parta "de uma liderança que se legitime pela capacidade de ser vista como representante dos valores coletivos".
"Juntar os cacos não é fácil", concorda. "Há questões urgentes no Brasil: fome, miséria, infraestrutura urbana… Isso tudo dá margem para discursos populistas que apontam saídas fáceis, muitas vezes buscando bodes expiatórios vistos como responsáveis pelo fracasso."
Novo pacto
"A sociedade brasileira precisa de um novo pacto democrático que a oriente para um objetivo comum”, analisa o sociólogo Gabriel Rossi, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing. Ele enumera situações anteriores em que isso foi necessário: em 1988, pela democracia; no governo Fernando Henrique Cardoso, pela estabilidade monetária; na primeira passagem de Lula pelo Planalto, pela diminuição da desigualdade social.
"Desde o governo Dilma [Rousseff] não temos mais essa força unificadora, que dá clareza ao caminho a ser percebido", diz ele.
Na visão do sociólogo, Lula, como presidente eleito, terá a dura missão de "mostrar verdadeiro zelo e compromisso pela democracia". E, na análise dele, o petista precisará, ao contrário do que se vê em outros casos contemporâneos, governar pela união, e não pela divisão.
Por fim, Rossi aposta também em uma melhora do clima geral se as pretensões socioeconômicas do presidente eleito derem resultados práticos, ou seja, quando "houver uma melhora substancial na qualidade de vida" das pessoas, sobretudo "na vida material".
"Se, por exemplo, a mãe, chefe de família, deixa de ficar preocupada com o marido perdendo emprego ou com o filho tendo que largar a faculdade, consequentemente, essa atmosfera beligerante tende a enfraquecer", comenta.
"Isso acontecerá porque o voto, além de ser uma questão de imaginários, também é uma questão material: estômago e o bolso têm o poder de diminuir a animosidade entre familiares."
Presidente do Geledés - Instituto da Mulher Negra, vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a historiadora e pedagoga Antonia Aparecida Quintão também coloca em Lula a responsabilidade por aparar as arestas do Brasil.
"O novo momento político, que terá início em janeiro, marca também o começo de um governo que assumiu o compromisso de unir novamente o país", enfatiza ela. "Sob o signo da esperança, entendo que uma liderança experiente, firme, que priorize o combate à fome […] e que seja capaz de enfrentar a violência […] e combater as desigualdades e as injustiças, poderá promover novamente o encontro do Brasil com o Brasil."
Quintão acredita que, nos últimos anos "nos afastamos de nós mesmos" e agora "poderemos voltar a ser o que sempre fomos" com base na promoção do diálogo e no destaque da diversidade, da resiliência e da cidadania.
"Esses últimos anos foram marcados por uma espécie de vale-tudo, no qual muitas pessoas sentiram-se autorizadas a falar e agir de maneira violenta, cruel, desumana e ofensiva. Isso precisa acabar urgentemente”, conclama. "E tenho certeza de que muitas medidas serão tomadas com esse objetivo. Sou professora e acredito que educamos principalmente com exemplos. Se queremos que as pessoas ajam com civilidade e gentileza e desta maneira que devemos agir."
Autor de, entre outros, (In)Felicidade para Corajosos, o filósofo Luiz Felipe Pondé, diretor do Laboratório de Política, Comportamento da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor da Fundação Armando Álvares Penteado, tem uma resposta mais simples: o dia a dia é o que vai unir novamente os brasileiros.
"Trabalhar, pagar boleto, pagar conta, cuidar de filho, casar, separar, enterrar familiar… É o que reúne", comenta. "O problema de todos esses espetáculos é parecer que a única forma de conviver junto seja através da partilha dos espetáculos."
Pondé lembra que "já perdemos copas, já houve ditadura no país, já houve conflitos" e "a vida segue" sempre. "Isso tudo não vai acabar com o país", sintetiza.
Redes sociais
De modo geral, os entrevistados acreditam que a organização das informações em tempos de redes sociais, em que algoritmos apresentam conteúdos segmentados de acordo com o interesse do público, é o grande responsável pelas fissuras da polarização. "Isso transformou e envenenou o ambiente. Fez com que as pessoas passassem a se comunicar em ilhas, só recebendo informações de quem pensa igual", diz Paes Manso.
"Não dá para buscar coesão social sem efetivamente atacarmos o problema da desinformação", acrescenta Rossi. "Tecnologias como Facebook e WhatsApp baseiam-se em conversas entre amigos, familiares e colegas: esses diálogos são repletos de crenças, elementos lúdicos e emoções. Consequentemente, torna-se propícia a desinformação, baseada em visões pessoais, e o compartilhamento descompromissado. Precisamos de um amplo e sério debate sobre o impacto das tecnologias digitais na sociedade."
Pondé diz ainda que "a polarização vai continuar, não é um fenômeno brasileiro". "Tem a ver com as redes sociais e com o fato de que quando as pessoas discutem política, é para se odiarem mesmo", afirma o filósofo.