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Como sobreviver a abusos na infância?

17 de setembro de 2024

Violentada sexualmente dos 8 aos 11 anos pelo padrasto, contorcionista Georgia Bergamim narra trajetória no documentário "Apesar de" e incentiva mais mulheres a quebrarem o silêncio.

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Uma mulher sentada de costas em um palco com dois refletores de luz sobre ela
Hoje aos 33 anos, a contorcionista Georgia Bergamim foi abusada quando criança pelo próprio padrastoFoto: Apesar de/divulgação

Para completar a posição "queixinho", uma das mais difíceis da arte da contorção, Georgia Bergamim precisou de quase quatro anos de treino. O movimento começa com o corpo de bruços no solo; quadril e pernas se elevam até os pés chegarem à frente do rosto. Os pulmões ficam extremamente pressionados sobre o chão, e o pescoço sustenta todo o peso.

O domínio também é mental. A habilidade de retorcer o corpo e formar poses que desafiam os limites motores foi descoberta depois de anos de violência dentro de casa. Bergamim foi estuprada dos oito aos onze anos pelo padrasto e a arte foi uma estratégia de sobrevivência.  

Aos 33 anos, ela mantém a técnica do queixinho e treina futuros acrobatas. A força, concentração e controle absoluto da respiração que o contorcionismo exige foram vitais para que a alma de Bergamim estivesse em paz com o próprio corpo.

"Eu me senti realizada quando finalmente consegui. Era um truque de contorcionista que era meu principal foco e minha paixão. Senti também que meu corpo era maravilhoso e que poderia fazer coisas incríveis", diz à DW. 

Uma mulher branca sentada no chão e com uma das pernas elevada e esticada ao longo do tórax e da cabeça
Bergamin saiu de casa e mudou de cidade aos 19 anos depois de ser aceita numa escola de circoFoto: Arquivo privado

A consciência corporal ajudou Bergamim a entender as violações que sofreu e a dividir com o mundo sua experiência. A história dela é detalhada no documentário Apesar de, que estreia no fim de setembro no festival internacional de cinema CineFem, no Uruguai, e no Bread and Roses, nos Estados Unidos, em outubro.

"No meu processo, enquanto eu estava tentando ter até referências de outras pessoas que passaram por isso, de outra sobrevivente, eu não encontrei muitas histórias. Por isso decidi falar", diz a artista. 

"Todo mundo contra mim"

Aos nove anos de idade, Bergamim se deu conta de que era vítima de estupro. Os abusos do padrasto já tinham começado pelo menos um anos antes, mas a penetração de um dedo foi como um marco da progressão da violência. 

"Aquilo me deu uma paralisada muito grande. Eu senti que algo foi violado, que tinha alguma coisa errada. Porque tem as manipulações do próprio abusador, que quer te fazer acreditar que tudo é normal", diz a acrobata sobre a infância.

Uma mulher branca encarando a câmera, sentada e com as mãos entrelaçadas sobre os joelhos
Ao compartilhar sua história, Bergamin espera encorajar outras sobreviventes de abusos a romper o silêncioFoto: Apesar de/divulgação

Aos 11 anos, ela diz que não suportava mais viver sob o mesmo teto que o padrasto. Em sua rotina de abusos, ouvia que ele mataria sua mãe e irmã caso contasse a alguém sobre a violência à qual era submetida. A irmã, oito anos mais nova, é filha do abusador, que também bebia demais e agredia toda a família quando estava alcoolizado.

"Foi quando eu tomei remédio, tentei me matar, e todo mundo ficou contra mim", relembra Bergamim. 

Depois dessa quase morte, os estupros pararam, mas a violência doméstica continuou. O padrasto a ameaçava dizendo que, quando ela crescesse, ficaria grávida dele. 

Recortes dessa infância foram capturados por uma câmera amadora do padrinho de Bergamim e fazem parte do documentário. São vídeos que mostram festas de aniversário dela, os presentes sobre a mesma cama onde sofria os abusos.

"Foi difícil me ver criança. No vídeo, eu vi como eu era realmente. E aí eu vi uma diferença dos sete para os dez anos no meu semblante. Eu tinha um olhar triste. Eu olhava e pensava assim, 'nossa, eu sei mais do ninguém porque eu era assim'", diz à DW. 

A tendência de proteger o abusador

A psicanalista Elisama Santos, uma das especialistas em saúde mental ouvidas no documentário, diz que, na maioria dos casos, as mulheres levam tempo até entenderem que são vítimas de abuso. E quando isso acontece na infância e adolescência, o cenário é especialmente mais complexo.

"Essa é uma fase que a gente não consegue entender bem qual é o limite ultrapassado. A grande maioria das mulheres que foi violentada não teve necessariamente a presença do pênis", explica Santos à DW.

Dados recentes compilados pela Fundação Abrinq mostram que a violência sexual afeta principalmente crianças e adolescentes. Das 62.091 vítimas que registraram queixa em 2022, mais de 45 mil tinham menos de 19 anos de idade – ou seja, 73,8%.

Quando as mulheres finalmente conseguem dar nome ao abuso, elas encontram outra barreira: o desmerecimento das pessoas próximas.

"A maior parte do abuso acontece dentro de casa, por conhecidos da vítima. E ele não é conhecido somente da vítima, mas é conhecido do pai, da mãe... Às vezes ele é pai, às vezes ele é tio, é avô. E a família quer proteger [o abusador], tem vergonha de lidar com aquilo", diz Santos. 

É por isso que inúmeras mulheres seguem tendo contato com o abusador depois que são violentadas, como foi o caso de Bergamim. Para ficar longe do padrasto, ela saiu de casa e mudou de cidade aos 19 anos depois de ser aceita numa escola de circo. Mas a partida também teve uma face extremamente dolorida: o medo de deixar a irmã caçula para trás.

"Quando eu me mudei, ela tinha 10 anos. Até hoje eu me emociono porque essa parte foi muito, muito difícil. Ao mesmo tempo que eu queria muito romper e ir buscar os meus sonhos, eu sentia um misto de culpa, com preocupação”, relembra a artista.

Bergamim contou para a mãe sobre os estupros anos mais tarde. O padrasto morreu em 2012.

Uma vida refeita

A artista começou a falar abertamente sobre seus traumas aos 23 anos. Foi quando buscou acompanhamento profissional contínuo – até então, ela só havia mencionado que fora abusada para uma amiga da adolescência, sem muitos detalhes.

"Para quem vive isso hoje, eu diria que, embora seja muito, muito, muito difícil falar, denunciar, sempre vai ter uma pessoa que vai te ouvir. É preciso achar essa pessoa. Porque às vezes você se sente tão incompreendida, tão isolada, tão sozinha e também tão sem esperança de que as pessoas vão acreditar em você que a gente perde as forças", aconselha.

Essa figura-chave é o que estudiosos da psicanálise chamam de testemunha esclarecida, diz Elisama Santos. "Essa pessoa vai te ouvir, vai te olhar e falar:  'nossa, isso o que você sofreu realmente é uma dor, não é uma impressão sua'. A maioria das mulheres abusadas nunca encontrou uma testemunha esclarecida”, afirma a psicanalista.

Como a história da contorcionista mostra, é possível superar e aprender a lidar com o passado de abusos. "Com acompanhamento, cuidando da saúde mental, essa mulher pode ser feliz e voltar a sorrir em naturalidade, se relacionar bem, namorar e ter filhos, ter experiências incríveis. A grande questão é que não dá pra gente acreditar que ela vai viver como se tudo isso não tivesse acontecido”, diz Santos.

A dor transformada em filme

Beatriz Prates, diretora do documentário, ouviu a história de Bergamim pela primeira vez em 2021. Naquela época, enquanto grupos políticos no Brasil tentavam banir a educação sexual nas escolas e propunham o homeschooling, Prates enxergou que o testemunho detalhado da artista seria um alerta à sociedade.

"Abuso sexual infantil é um tema sobre o qual se conversa pouco, que se sabe pouco. É um tema difícil, mas urgente. A história da Geórgia mostra que o sistema inteiro em volta dela falhou, mas inspira pelo fato de ela ter sobrevivido, ter feito uma carreira, ter se tornado empreendedora", diz Prates. 

A expectativa da diretora é que o documentário abra conversas dentro de casa, jogue luz sobre este assunto tão obscuro e ajude pais e vítimas a identificarem situações de abuso. 

"Quero que a mensagem do filme seja corajosa, positiva. E que funcione como um lugar para quebrar o silêncio. Porque eu sei que dali muitas pessoas vão ter coragem de falar”, afirma Bergamim à DW. 

Como denunciar

Casos de violência sexual e/ou doméstica contra mulheres podem ser denunciados através do Ligue 180. Trata-se de um serviço público, gratuito e confidencial de atendimento à mulher 24 horas por dia, acessível de qualquer lugar. A ligação é gratuita.

É possível fazer a ligação de qualquer lugar do Brasil ou acionar o canal via chat no Whatsapp (61) 9610-0180. Em casos de emergência, deve ser acionada a Polícia Militar, por meio do 190.

Outros casos podem ser denunciados pelo Disque 100. O serviço é uma espécie de "pronto socorro" dos direitos humanos e atende graves situações de violações que acabaram de ocorrer ou que ainda estão em curso, acionando os órgãos competentes e possibilitando o flagrante. 

O Disque 100 funciona diariamente, 24 horas, por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. As ligações podem ser feitas de todo o Brasil por meio de discagem direta e gratuita, de qualquer terminal telefônico fixo ou móvel, bastando discar 100. 

Casos de violência e abuso sexual infantil também podem e devem ser denunciados à polícia, em qualquer delegacia ou delegacias especializadas, bem como aos conselhos tutelares, Ministério Público e profissionais de saúde, que são obrigados a notificar as autoridades quando houver suspeita de violência.