Crise venezuelana cruza a fronteira
12 de dezembro de 2016Fazia dois dias que a estudante venezuelana Estefani Benavides não comia quando seu corpo se rendeu. A jovem de 18 anos foi encontrada inconsciente ao lado do tanque onde lavava roupa. A mãe, Yusmaris, de 32 anos, já vivia no Brasil há quatro meses e correu para a Venezuela. "Tive que buscá-la", diz, apontando uma menina magra, que lava os vidros dos carros em um semáforo em Boa Vista, Roraima. "Mas os meus outros dois filhos ainda estão lá", diz ela, aflita.
Yusmaris e sua filha estão entre os mais de 77 mil venezuelanos que entraram no Brasil pela cidade fronteiriça de Pacaraima, no norte de Roraima, entre janeiro de 2015 e setembro de 2016, segundo dados do Ministério da Justiça. No mesmo período, saíram pouco mais de 67 mil, ou seja, cerca de 10 mil venezuelanos permaneceram.
Já o governo de Roraima estima que 30 mil imigrantes da Venezuela vivam atualmente no estado, principalmente em Boa Vista e Pacaraima. A Polícia Federal têm realizado deportações em massa – a última, de mais de 450 venezuelanos, foi impedida pela Justiça na sexta-feira (09/12). Em 7 de dezembro, o governo estadual decretou situação de emergência em Saúde Pública devido à sobrecarga dos hospitais locais, com o aumento do fluxo migratório.
Assim como dezenas de venezuelanos, a família de Yusmaris passa o dia nos semáforos da capital, vendendo pão caseiro, morangos, garrafas d'água ou limpando vidros.
"É melhor estar aqui do que lá, sem comida. No semáforo nos humilham, nos atropelam, jogam água na nossa cara, mas eu tenho orgulho de poder mandar comida para a minha família na Venezuela", conta Yusmaris, que deixou dois filhos, um de 14 e outro de 16, com parentes em Maturín, sua cidade natal.
A Venezuela atravessa uma grave crise política e econômica, com desabastecimento e inflação prevista de 720% neste ano. Faltam alimentos, remédios e itens básicos de higiene.
Assim, quando Yusmaris voltou para buscar Estefani, quase trouxe a família inteira. "Eles queriam vir todos para o Brasil. Estão comendo uma vez por dia só. Eu levei arroz e eles choravam: 'ai, há quanto tempo eu não como arroz'", conta Yusmaris. Em Boa Vista há quatro meses, a família divide o aluguel de um quarto, de R$ 350, com outros seis conterrâneos.
Refúgio no Brasil
Assim como muitos venezuelanos, Yusmaris deu entrada em um pedido de refúgio na Polícia Federal em Boa Vista. Para os imigrantes, essa é a forma mais rápida e barata de se regularizar no país. Por isso, as solicitações de refúgio de venezuelanos passaram de apenas uma, em 2012, para 825, em 2015. Até outubro de 2016, foram 1.805.
Com o protocolo da solicitação, os imigrantes podem obter todos os documentos brasileiros enquanto esperam o julgamento do pedido – o que tem demorado em média dois anos, segundo autoridades locais.
"Quando tiver o protocolo, vou procurar um trabalho fixo", comemora Yusmaris. A alta na demanda de refúgios sobrecarregou a sede da Polícia Federal em Boa Vista, que amanhece todos os dias com dezenas de venezuelanos à espera de atendimento.
Poucos meses atrás, a fila era tão grande que os agendamentos eram marcados só para 2018. Esse foi o caso da venezuelana Johandra Adabalo, de 23 anos, que veio de Ciudad Guayana para Boa Vista em setembro. Primeiro, ela foi agendada para 2018, mas voltou à PF e conseguiu ser remarcada para a semana seguinte.
"Recebemos reforço de funcionários e equipamentos de urgência e conseguimos triplicar os atendimentos. Hoje atendemos 50 imigrantes por dia, mas ainda temos uma fila de espera de cerca de quatro mil agendamentos", explica o delegado da PF Marcos de Aguiar Ribeiro, chefe da Delegacia de Polícia de Imigração do Estado de Roraima.
De acordo com especialistas, os venezuelanos optam pelo refúgio porque a lei de imigração é muito burocrática. Para pedir um visto de permanência, normalmente é preciso ter uma justificativa, como trabalho, reunião familiar, casamento ou prole brasileira. Um novo projeto de lei tramita no Congresso para rever o atual Estatuto do Estrangeiro, criado durante o regime militar, em 1980. A medida foi aprovada na Câmara dos Deputados em 6 de dezembro e segue para o Senado.
"Por isso, é mais fácil pedir o refúgio. Enquanto a solicitação não é julgada, a situação no país de origem pode ter melhorado e ele pode voltar, ou ele já casou ou teve um filho brasileiro e pode ficar", explica Gustavo da Frota Simões, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima.
Como a Venezuela faz parte do Mercosul, não é preciso visto para entrar no país. Os venezuelanos têm direito a permanecer até 90 dias no Brasil, para turismo. Na fronteira, basta informar o motivo da viagem e a PF entrega uma autorização com o tempo permitido.
Apesar do refúgio ser mais simples, especialistas afirmam que é pouco provável que ele seja concedido em massa a imigrantes da Venezuela. Em 2015 e 2016, das 2.630 solicitações de refúgio de venezuelanos, apenas 6 foram deferidas. E dos 8.455 refugiados no Brasil, somente 11 são venezuelanos.
"Esses estrangeiros não se enquadram como refugiados, que fogem do seu país devido a perseguições políticas, étnicas, raciais, religiosas. Eles são migrantes econômicos", afirma o delegado Ribeiro.
Preocupados justamente com a negação dos pedidos, movimentos sociais devem demandar que governo federal estenda o visto humanitário, já concedido a haitianos, para os venezuelanos.
"Eles não estão buscando um emprego, uma vida melhor no Brasil, eles estão fugindo da fome", afirma a irmã Telma Lage, advogada e coordenadora do Centro de Migrações e Direitos Humanos da Diocese de Roraima.
Vida de refugiado
Enquanto a sua solicitação não é julgada, Johandra e sua amiga sobrevivem vendendo dindin (suco congelado em saquinhos) nos sinais. Ganham cerca de 25 reais por dia cada uma. Johandra estudava para ser professora e trabalhava em um supermercado na Venezuela, mas, com a inflação, o salário já não dava para pagar os estudos e a comida.
"Mesmo que você tenha o dinheiro, precisa ficar horas na fila do supermercado e não pode levar o que quer. Muitas vezes a comida nem chega na loja, mas chega para um grupo de chavistas, que dividem os alimentos entre si", reclama ela, que pretende enviar comida para a mãe e irmãos.
A amiga, Karelis Delgado, de 27 anos, trabalhava em uma sorveteria em Caracas, onde ganhava 20 reais por mês. "Só que um quilo de arroz está 5 reais lá", conta. Karelis teve que deixar os dois filhos, um de cinco e outro de sete anos, com a avó. "Assim que sair o meu protocolo de refúgio, volto para buscá-los. Porque aqui passo os meus dias chorando, longe deles".
Karelis e Johandra dividem uma pequena casa com outros seis venezuelanos. Dormem todos no mesmo quarto, onde uma cama de casal e dois colchonetes ocupam quase todo o espaço. Há um pequeno cabideiro de plástico no chão e uma rede, pendurada por cima da cama. Um banheiro e uma cozinha, com uma mesa de plástico, completam o imóvel.
A TV é emprestada, a geladeira é de segunda mão e o fogão foi achado no lixo. "Uma benção!", comemoram. Quando entraram no Brasil, as amigas tinham apenas uma colher e uma cumbuca, trazidas da Venezuela. "Tínhamos que comer uma de cada vez", lembram. Agora exibem orgulhosas meia dúzia de pratos e talheres, cada um de um tipo diferente. "Damos graças a Deus! Chegamos aqui sem nada e olha quanto já temos hoje".