Curta leva violência em favelas às telas da Berlinale
24 de fevereiro de 2023Dirigido pelos brasileiros João Pedro Prado e Bárbara Santos, o filme Quarta-feira de cinzas foi selecionado para a edição atual do Festival de Cinema de Berlim, a Berlinale, e a mostra na qual ele é exibido surpreendeu. Trata-se da Perspektive Deutsches Kino, em português, Perspectiva do Cinema Alemão, que reúne promessas do cinema do país europeu.
Além de dirigido, o curta-metragem é estrelado por brasileiros e tematiza a violência policial em favelas do país, mas oficialmente é uma produção da Alemanha, mais especificamente da Universidade de Cinema de Babelsberg e da Schuldenberg Films.
Com 30 minutos de duração, Quarta-feira de cinzas tem o formato de musical e conta a história de Demétria, uma mãe solteira que espera a filha Cora voltar da escola, enquanto uma operação policial acontece na favela em que moram.
"Mesmo sendo uma produção alemã feita nos moldes burocráticos e de infraestrutura alemães, ela é de uma alma profundamente brasileira, de um elenco quase completamente brasileiro, cantado em português. Então, não é nem só alemão, nem só brasileiro. Se a gente fizesse esse filme no Brasil, ele seria completamente diferente", diz Prado.
Estúdio mais antigo do mundo
O curta foi gravado em Babelsberg, o estúdio de cinema mais antigo do mundo e uma verdadeira instituição do cinema alemão.
Prado, de apenas 28 anos, faz um mestrado em direção na Universidade de Cinema de Babelsberg e se orgulha ao contar que a favela cenográfica do seu filme foi montada a 50 metros de onde foi gravado um dos maiores clássicos da história do cinema: Metrópolis, de Fritz Lang (1927).
Outro diferencial do curta é que ele recebeu um selo de sustentabilidade, já que todo o material da cenografia veio da reciclagem.
"Se você olhasse atrás das paredes da casa da Demétria, você veria um selo da DEFA, que era o estúdio de cinema da DDR [em português, RDA, a antiga Alemanha Oriental]", diz Prado. "É uma simbologia muito forte colocar essas paredes agora sob novo contexto, uma nova luz, contando uma história brasileira."
DNA multicultural
Considerado um dos seis representantes do Brasil no Festival de Berlim deste ano, o filme nasceu no coração da comunidade brasileira da capital alemã, e a influência multicultural está no DNA do filme.
A parte técnica da produção contou com profissionais de várias nacionalidades. A diretora de arte, por exemplo, foi a peruana Claudia Valeria Barrantes Sotomayor.
"São pessoas que moram, vivem, trabalham, que trazem a sua criatividade e que constroem coisas na Alemanha. A gente está aqui construindo coisas coletivamente, com alemães, croatas, argentinos, peruanos. Então é uma produção que tem um simbolismo muito grande", diz Santos.
A música foi escrita pela própria Bárbara Santos e composta pelo alemão Ole Wiedekamm. "A gente começou a trocar [experiências]. Então, eles foram pegando algumas coisas que eu mandei, muitos vídeos da umbanda, do candomblé, de rezadeira. Mas se você escutar [as músicas], você vê que tem alguma coisa ortodoxa", diz a diretora, para qual o filme é um resultado da verdadeira integração alemã.
Musical sobre violência
A produção teve uma grande influência do teatro. Todos os ensaios foram feitos no Kuringa, o centro de teatro do oprimido em Berlim, dirigido por Santos. Ela trabalhou por décadas com Augusto Boal, o criador desse método.
De início, o espectador tem dificuldade em encaixar o filme em um gênero, já que um musical falando sobre a violência da polícia brasileira é algo inusitado.
"Fazer um musical dá para a gente a possibilidade de distanciamento, porque a gente quer que as pessoas pensem também enquanto estão vendo esse filme. Então, não é que você fica lá só se emocionando com a violência", diz Santos.
A diretora conta que não queria fazer um filme realista. "Se a gente for contar essa realidade, as pessoas não conseguem nem chegar perto. Você consegue acreditar naquele governador descendo de helicóptero e dizendo que é para atirar na cabecinha das pessoas? É tudo absurdo, não parece real."
Inspirado em cenas reais
A inspiração para o filme veio de imagens reais de mães chorando sobre caixões de seus filhos mortos pela polícia. Um dos casos que mais chocou a equipe foi o de Marcos Vinicius da Silva, de 14 anos, morto com um tiro nas costas enquanto ia para a escola, durante uma operação da Polícia Civil e do Exército no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, em junho de 2018.
"Tem algo de épico na força daquelas mulheres que estão ali combatendo aquele governo, combatendo aquela violência quase que sozinhas, deixadas somente elas com elas", comenta Prado.
Para interpretar a personagem Demétria, Uiara Maciel, umas das envolvidas no projeto do curta, entrou em contato com várias mães afetadas pela violência policial.
"Muitas delas relataram depressão, mesmo mães que não perderam seus filhos, mas que todos os dias mandam os filhos para a escola, para o trabalho e não sabem se eles vão voltar", lembra Maciel.
Orçamento limitado
O filme custou ao todo 35 mil euros (o equivalente a cerca de R$ 190 mil) e foi financiado pelo fundo francês War on Screen, feito para desenvolver roteiros com temática de guerra. Contou ainda com 20 mil euros provenientes do Ministério da Cultura alemão.
Diante do orçamento limitado, a solução encontrada por Prado foi buscar apoio dentro da estrutura da universidade pública alemã em que estuda e junto à comunidade brasileira de Berlim.
Quarta-feira de cinzas ainda não tem data de lançamento no Brasil, mas os diretores revelam que o sonho deles seria de estrear no Festival de Cinema do Rio de Janeiro deste ano. Na Berlinale, ele pode ser visto até este domingo, quando se encerra o evento.