"Desmantelar bocas de fumo não é a melhor estratégia"
14 de fevereiro de 2017A diretora do Departamento de Segurança Pública da OEA (Organização dos Estados Americanos), Paulina Duarte, afirma, em entrevista à DW Brasil, que é preciso tratar o tema das drogas com um enfoque multidisciplinar. Ela defende uma articulação entre instituições de inteligência, jurídicas e financeiras "para o confisco de bens, a repressão à lavagem de dinheiro e a recuperação de ativos" do mercado ilícito de drogas.
Segundo Duarte, que foi secretária nacional de Políticas de Drogas entre 2011 e 2013, os países percebem hoje a necessidade de revisar políticas públicas construídas com enfoque proibicionista, o que facilita o debate para a regulamentação do mercado.
Ela afirma ainda que a atual lei de drogas, de 2006, pecou por não detalhar critérios objetivos para diferenciar o usuário do traficante. "Continua-se cultivando a falsa percepção de que o desmantelamento de bocas de fumo é a melhor estratégia para combater o tráfico. A lógica policial prestigia a repressão do varejo." Só que, segundo ela, "levar o 'pequeno traficante' ou mesmo o 'usuário' para a prisão não vai acabar com o tráfico de drogas. Tampouco reduzi-lo."
DW Brasil: Qual a visão da OEA sobre a economia das drogas, o mercado ilícito, e os eventuais caminhos para combatê-lo?
Paulina Duarte: A abordagem da economia ilícita das drogas facilita a compreensão, em certa medida, da violência que grassa no continente americano. A disputa por território, domínio de mercados locais, controle das rotas do tráfico, assim como o enfrentamento entre grupos criminosos e forças de segurança são fenômenos que repercutem a violência subjacente ao problema das drogas.
As vítimas desse universo podem ser encontradas, principalmente, nos países que servem de rota para um tráfico cada vez mais crescente. Trata-se de uma violência epidêmica que contribui para explicar as elevadas taxas de homicídios em países da região.
Em muitos casos, as respostas prestigiadas para a superação do problema foram a erradicação do cultivo ilícito e o combate à delinquência organizada. A militarização ganhou espaço, e também uma maior intensidade no uso da força e da violência.
A OEA converteu-se em um dos principais espaços multilaterais de discussão e referência técnica para o "problema das drogas" e como abordá-lo. O ponto de partida é a consideração de que não existe um só problema relacionado com as drogas, mas múltiplos problemas. Os Estados perceberam a necessidade de revisar suas políticas, muitas construídas a partir de enfoques proibicionistas. Romperam-se barreiras que impediam um diálogo franco e transparente, incluindo a criação de mecanismos voltados para a regulamentação do "mercado de entorpecentes".
O crime organizado transnacional é o ator principal. O enfoque integral e multidisciplinar considera outras dimensões, como a coordenação internacional e articulação interinstitucional entre agências de regulação e de inteligência financeira e patrimonial, ministérios da fazenda ou economia (e seus órgãos de arrecadação fiscal), polícias, ministério público e poder judiciário para o confisco de bens, a repressão à lavagem de dinheiro e a recuperação de ativos.
O Brasil ainda persegue uma lógica punitiva, do encarceramento do traficante, sem definir ao certo a diferença entre usuário e traficante. Seria o caminho mais eficaz?
A atual lei sobre drogas, de 2006, pecou em não detalhar critérios objetivos para diferenciar o usuário do traficante. Continua-se cultivando a falsa percepção de que o desmantelamento de bocas de fumo é a melhor estratégia para combater o tráfico, ignorando que essa prática se incrementa e diversifica a cada dia, reorganizando-se a todo instante para perseguir compensações econômicas cada vez mais ambiciosas.
A lógica policial prestigia a repressão do varejo. A prisão em flagrante persevera como um procedimento decisivo para definir quem é "usuário" e quem é "traficante". O tema relacionado às drogas continua sendo analisado sob uma perspectiva reducionista e insuficiente. Incoerente com suas dimensões e reflexos.
Levar o "pequeno traficante" ou mesmo o "usuário" para a prisão não vai acabar com o tráfico de drogas. Tampouco reduzi-lo. Essas pessoas, por assim dizer, são consideradas "descartáveis" nesse contexto de marginalidade. Quando não se diferencia o "traficante-empresário" do "traficante-passador" e estes do "usuário", o que se faz é, apenas, alimentar uma perspectiva de intervenção em que só se acentuam as desigualdades de tratamento e, por assim dizer, injustiças.
Qual sua opinião sobre a atual crise do sistema penitenciário no Brasil?
Não é uma situação nova nem isolada. É consequência de uma acumulação de problemas estruturais e de uma sucessão de fatos e circunstâncias que resultaram em um contexto que hoje já não é mais possível ignorar. O fato de reunir, em termos absolutos, a 4ª maior população prisional do planeta, sem que haja espaço adequado para manter, sob custódia e em condições dignas, a todas essas pessoas, é um sintoma da situação. Não é algo extraordinário nem exclusivo ao Brasil. É um fenômeno que repercute em todo o continente americano. O que se desnuda dele são as debilidades das capacidades institucionais e de gestão e a pouca coordenação entre o sistema penitenciário com a Justiça, as instituições policias e os programas de prevenção, entre outros.
O debate sobre a descriminalização das drogas (e ou legalização, em alguns casos) seria factível para sociedades como a brasileira?
Esse é um debate recorrente no mundo e, em particular, nas Américas. No Brasil, do ponto de vista jurídico, o tema está pendente de solução, em julgamento interrompido por um pedido de vista do ministro Teori Zavascki no Supremo Tribunal Federal.
Neste atual momento, o Brasil está dividido entre opiniões polarizadas. E diante dessa ambiência social, levar adiante uma discussão que desperta tanta polêmica pode não alcançar a maturidade das soluções que tanto se deseja, cedendo, ao revés, espaço para um debate de pouca profundidade, que é tudo ao que o tema da "descriminalização do uso de drogas" já não pode mais se conformar. Há o sério risco de que experiências pessoais ou mesmo campanhas veiculadas pela mídia, impregnadas de viés moralista, possam interferir negativamente no esclarecimento das circunstâncias relacionadas ao tema.
De nada adiantará considerar um "usuário" como um "não infrator da lei" se as instâncias oficiais continuam ocupadas, apenas, de perseguir, criminalmente, aqueles que pouca expressão têm no universo do comércio empresarial da droga.
É chegada a hora de se investir e colocar em prática de larga escala medidas de prevenção e o oferecimento de serviços melhor organizados e estruturados para o tratamento da dependência química. Nesse sentido, o debate continua aberto e não vai se esgotar com uma decisão judicial.