Devolução de arte confiscada por nazistas esbarra em lacunas legais
23 de novembro de 2013"Se eu fosse documentar a procedência de todas as peças no nosso museu, ia estar ocupado até o dia da minha aposentadoria – e ainda faltam mais de 25 anos", diz Marcus Kenzler, rindo, e acena na direção de alguns dos objetos expostos no Museu Estadual de Arte e História da Cultura da Baixa Saxônia, na cidade de Oldenburg.
A instituição abriga cerca de 30 mil peças, de pinturas, desenhos e gravuras até móveis. Desde que assumiu a função de pesquisar a proveniência do acervo, há dois anos e meio, Kenzler só identificou quatro delas como raubkunst (arte roubada ou saqueada). Assim se denominam, na Alemanha, obras que o regime nazista extorquiu de seus proprietários de direito – por exemplo, colecionadores judeus.
"No caso de duas peças, as negociações de restituição com as famílias dos donos originais já transcorrem. Quanto às duas outras, ainda estou fazendo a pesquisa genealógica, para descobrir se há descendentes dos antigos donos", relata. Isso demonstra como o processo da identificação de origem de obras de arte é longo e trabalhoso.
Direito alemão não contempla Holocausto
Kenzler considera sensacionalista o atual debate sobre a enorme coleção do negociador de arte Hildebrand Gurlitt, encontrada no apartamento de seu filho, Cornelius, em Munique. Para o perito, "não são sérias" as reivindicações de que se investigue "imediatamente" se há, entre as quase 1.400 peças, obras extorquidas pelos nazistas. Pois, segundo ele, pesquisa exige tempo.
Outro fator, conforme Kenzler, é a falta de recursos de pessoal e financeiros: para os mais de 6.300 museus da Alemanha, só existem cerca de 60 peritos como ele. Além disso, o setor de pesquisa de procedência só recebe 2 milhões de euros por ano do Ministério da Cultura, sua principal fonte de financiamento.
Em entrevista à DW, o advogado de Munique Hannes Hartung, especializado em direito da arte, aponta, ainda, o dilema causado pela falta de parâmetros jurídicos no que tange à "arte saqueada".
Ele afirma que a legislação alemã é algo criado para regular relações comerciais ou jurídicas, mas incapaz de lidar com um acontecimento como o Holocausto. "É preciso encontrar regras de prescrição que tornem possíveis recursos jurídicos para restituição da arte roubada pelos nazistas", exige Hartung.
"Roubada" ou "degenerada"?
Mas também em nível internacional não há regulamentação legal vinculativa sobre o tema. É fato que, após a Segunda Guerra Mundial, as leis impostas pelos Aliados (1947) e pela República Federal da Alemanha (1957) normatizavam a restituição. No entanto, elas não tinham validade na Alemanha Oriental, sob regime comunista.
Em 1998, 44 países, incluindo a Alemanha, se encontraram em Washington para a Conferência sobre Bens da Era do Holocausto. Os participantes apenas acordaram "princípios não vinculativos" para a arte confiscada pelo regime, ficando os respectivos países encarregados de agir "no contexto de suas próprias disposições legais". Assim, não é de espantar que, até agora, se tenha avançado tão pouco na devolução aos proprietários.
Hartung também enfatiza a necessidade de verificar-se muito bem se eventuais objetos reencontrados são, de fato, arte confiscada pelos nazistas. Isso implica apresentar, para cada uma das peças, provas de que houve "arrestamento associado a perseguição". Essa regra também se aplica às quase 1.400 obras da coleção Gurlitt.
Por outro lado, em se tratando da arte difamada pelos nazistas como "degenerada" e confiscada sob essa alegação, a base jurídica é totalmente outra. "Nesse caso, foi o Estado nazista que saqueou a si mesmo: afirmou-se que as peças não eram arte, por isso elas foram confiscadas do próprio patrimônio público, e em geral vendidas ou trocadas por outras."
Confiscos nazistas seguem lícitos
Também Kenzler considera "difícil" a situação legal relativa ao tema. Somente da casa de sua própria família foram retiradas em 1937 mais de cem obras classificadas como "arte degenerada".
Documentos comprovam que, já na época, cerca de uma dúzia delas foi parar nas mãos de Hildebrand Gurlitt. Ainda não foi esclarecido se elas se encontram na coleção descoberta no apartamento em Munique.
De uma forma ou de outra, o problema para Kenzler e seus colegas é que a legislação não lhes dá espaço para agir. "Naquela época, os confiscos ocorreram sobre a base no direito vigente, o qual não foi revertido mesmo depois de 1945."
"Em alguns casos, os proprietários de direito e o Estado chegaram a um acordo amigável", observa o advogado Hartung. Ele cita como exemplo as negociações sobre o óleo Cena de rua berlinense, de Ernst-Ludwig Kirchner, originalmente de posse de um colecionador judeu.
O quadro foi arrematado em 2006 por 38 milhões de dólares, na casa de leilões Christie's, em Nova York, cabendo aos herdeiros parte da quantia. "Porém, tanto este como outros casos envolveram processos longos e dolorosos", ressalva Hartung.
Mais do que boa vontade
O jurista de Munique considera despropositada a forma como a mídia e os círculos de arte vêm lidando com Cornelius Gurlitt, filho do colecionador atuante durante o nazismo. "Não é correto prejulgá-lo como criminoso, em vez de recorrer ao diálogo e ao entendimento", critica.
"Além disso, no passado Gurlitt se mostrou um parceiro de negociações muito acessível", destaca Hartung, acrescentando que no caso de O domador de leões, de Max Beckmann, ele entrou rapidamente em acordo com os herdeiros do marchand Alfred Flechtheim, dividindo com eles a soma paga pelo quadro. "Por outro lado, na ocasião o colecionador foi tratado de forma adequada", acentuou Hannes Hartung.
Assim, tão mais importante é aprender as lições que o caso do "Tesouro de Munique" propõe, aconselha o especialista em arte. "Precisamos de regulamentações legais que possibilitem um processo transparente de restituição, não só com base na boa vontade, mas sobre o fundamento do direito e da justiça. E aprendemos que é preciso evitar prejulgamentos."