Disputas e rancor ofuscam despedida a Kohl
30 de junho de 2017Um ícone político morto, uma jovem viúva, filhos que se afastaram, amigos controversos e uma batalha pela herança e para impor uma versão dos fatos: tudo isso poderia ter saído da pena de um dramaturgo como Shakespeare, mas é a realidade que antecede a homenagem final ao ex-chanceler federal alemão Helmut Kohl, que morreu no último dia 16 de junho.
Tanto do ponto de vista político como emocional, a situação é tensa. Há, por exemplo, a "minha menina", como Kohl costumava chamar a sua antiga protegida Angela Merkel – uma expressão ainda hoje repetida porque sintetiza a complicada relação entre os dois. "A menina" – hoje chanceler federal da Alemanha e presidente da CDU de Kohl – não deveria discursar durante a cerimônia de despedida, segundo a revista Der Spiegel. A relação entre Merkel e o antigo chanceler esfriou muito depois que ele deixou a política, em 2002.
Em 1999, em meio ao escândalo de doações partidárias ilegais para a CDU, Merkel pronunciou as palavras que, segundo especialistas, são hoje vistas como o prenúncio do fim da era Kohl: "As práticas reconhecidas por Helmut Kohl causaram estragos ao partido". A então secretária-geral da CDU escreveu um artigo de opinião para o jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, no qual conclamava o partido "a aprender a caminhar sozinho, a ter confiança para encarar a luta contra o adversário político sem o seu velho cavalo de batalha, como Helmut Kohl frequentemente se referia a si mesmo."
Pouco depois desse golpe de misericórdia no antigo mentor, principal nome envolvido no escândalo de caixa 2, e em meio às acusações de corrupção que atingiam boa parte da direção do partido, Merkel assumiria a presidência da CDU. Em 2005, tornaria-se a primeira mulher a ocupar a Chancelaria Federal.
Desde então, Merkel várias vezes tentou se reaproximar de Kohl. Em 2010, por ocasião do seu 80º aniversário, ela o elogiou publicamente pelas suas conquistas, sem as quais "as vidas de milhões de pessoas que, como eu, até 1990 viveram na Alemanha Oriental, teriam sido completamente diferentes". Era uma referência à Reunificação, o legado maior da era Kohl. Mas o antigo chanceler nunca a perdoou. Conhecido por guardar rancor, Kohl teria várias vezes dito à sua esposa que não queria um discurso de Merkel no seu enterro.
Cerimônia europeia, sem Órban
Tentar impedir um discurso da chanceler federal da Alemanha não foi a única ação de Maike Kohl-Richter a gerar controvérsia. Trinta e quatro anos mais nova do que o antigo chanceler, Maike o conhecera na Chancelaria Federal, durante os seus últimos anos de governo. Eles se casaram em 2008, poucos anos depois da morte da primeira mulher de Kohl, Hannelore. A família dele não participou da cerimônia. O empresário de comunicação Leo Kirch e o então diretor de redação do jornal Bild, Kai Diekmann, foram os padrinhos do casamento.
Em 2008, Kohl sofreu um traumatismo craniano após uma queda. Desde então, ele mal podia falar e andava numa cadeira de rodas. Maike assumiu a defesa dos interesses do marido. No seu primeiro embate com a política alemã, ela foi derrotada. Merkel vai discursar, na condição de chanceler federal alemã, na cerimônia oficial de despedida de Kohl. Mas a viúva conseguiu impor que o evento não seja em solo alemão, mas em Estrasburgo, na França – outra decisão controversa.
Um outro desejo da viúva – e, segundo ela, também de Kohl – não foi atendido: um discurso do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Órban, que Kohl conhecera, então ainda um jovem político de ideias liberais, depois do colapso da União Soviética e com o qual ele manteve, desde então, uma forte amizade.
Hoje, Órban é criticado justamente pelo seu autoritarismo, em franca contradição com o legado de liberdade política de Kohl, associado à Reunificação. Além disso, suas posições claramente antieuropeias e sua política restritiva de refugiados também estão em forte contraste com os ideais europeus que a cerimônia em Estrasburgo, segundo Maike Kohl-Richter, deveria ressaltar.
Com ou seu Órban, a opção por Estrasburgo também gerou controvérsia: é a primeira vez que um chanceler federal alemão não recebe uma cerimônia oficial de despedida em solo alemão. Em vez disso haverá um ato europeu, neste sábado (01/07), com discursos do presidente da França, Emmanuel Macron, do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, e do ex-presidente americano Bill Clinton.
Brigas de família
Em vez de ser enterrado no jazigo da família, ao lado da primeira esposa, o corpo de Kohl será levado de Estrasburgo para uma missa fúnebre na catedral de Speyer e, depois, enterrado no cemitério ao lado. Apesar de algumas pessoas considerarem tudo isso um desrespeito ao papel de Kohl como chanceler da Reunificação, ao menos a opção por Speyer faz algum sentido: Kohl sempre manteve boas relações com a cidade, onde foi homenageado com honras militares quando deixou o governo, em 1998.
Não se sabe se questões pessoais foram determinantes para que Kohl não seja enterrado ao lado da primeira esposa. Certo está, porém, que as suas relações com os filhos do primeiro casamento eram conturbadas. E também as da viúva. Diante das câmeras de televisão, o filho mais velho, Walter, foi impedido de entrar na residência do pai depois da morte deste. Mais tarde, o advogado de Kohl-Richter negou que isso tenha ocorrido.
"Só posso expressar minha profunda consternação e meu luto pela morte dele e que tudo isso esteja acontecendo desse jeito", disse Walter ao jornalistas presentes. "Meu pai rompeu com muitas pessoas do seu entorno. Principalmente também com os netos, que sofreram muito por o avô não estar mais disponível para eles", afirmou Walter, que estava acompanhado do próprio filho.
Uma coisa deve-se reconhecer: controvérsias sempre fizeram parte da reputação de Kohl, como bem lembrou o presidente do Bundestag, Norbert Lammert, numa cerimônia no parlamento. "Lendárias são tanto sua força de união como sua atuação polarizadora – aliás, isso vale para as relações entre os partidos políticos e também dentro da CDU", disse o político, também da CDU, sobre o antigo chanceler.
Ainda assim, o político Kohl deve ser honrado principalmente pelas suas conquistas políticas, disse Lammert. "Devemos principalmente a ele que a unidade pacífica do nosso país, dentro de uma Europa livre e pacificada, seja hoje realidade." Controvérsias à parte, ao menos o legado político de Kohl segue intacto.