Pina Bausch
14 de fevereiro de 2011"Pina, eu não vejo você nos meus sonhos. Quando você vai vir me visitar?", diz a voz de uma das dançarinas da companhia Tanztheater Wuppertal no filme PINA, enquanto a câmera enfoca seu rosto e sua reação às próprias palavras.
O comentário dos integrantes sobre o trabalho, o relacionamento pessoal, o legado e as saudades da coreógrafa Pina Bausch (1940-2009) é um dos elementos recorrentes no documentário dirigido por Wim Wenders, estreado mundialmente neste domingo (13/02), no Festival Internacional de Cinema de Berlim.
Durante um bom tempo, os dois amigos vinham trabalhando num grande projeto: Wenders registraria em 3D os ensaios do Tanztheater Wuppertal, num road movie transcontinental. Até que, em 30 de junho de 2009, "aconteceu o inimaginável" – nas palavras do cineasta: Pina Bausch faleceu inesperadamente.
Toda a estrutura montada para a produção perdeu a validade e a razão de ser, a primeira reação foi o cancelamento sumário do projeto. Porém, passado um tempo de luto e reflexão, Wenders decidiu que era possível transfigurar a ideia original numa homenagem: não mais um filme com e sobre, mas sim para a artista.
Desejo de eternidade
É possível transportar para a tela – que seja em 3D – a magia do palco de dança, sobretudo a de um teatro-dança tão singular quanto o de Pina Bausch? Que a questão fique em aberto. Certo é que, pelo menos em um sentido, Wenders consegue ressuscitar o poder da coreógrafa.
Poucos minutos filme adentro, depois que se apresentaram os elementos de que ele será tecido – cenas filmadas no teatro e em locação, os pungentes depoimentos dos participantes, material de arquivo, Pina viva, no palco e nos ensaios, suas parcas, porém intensas palavras – tão logo essa trama se revela, um pensamento passa pela cabeça do espectador sensibilizado: "Sei que não é possível, mas quem dera que o filme nunca acabasse..."
E nisso PINA reproduz o sentimento que provocavam as tortuosas e avassaladoras Tanzabende da homenageada: o desejo de que o espetáculo nunca tivesse fim, que conseguisse vencer as fronteiras do tempo, assim como explodia o espaço do palco, as possibilidades dos corpos humanos. O anseio de que esse prazer artístico doloroso e desmedido fosse eterno.
Ou talvez quem esteja falando seja a infantil vontade de que Pina não tivesse morrido – de que gente como ela nunca morresse! Ou, quem sabe, se trate uma questão de sobrevivência: "Dance, dance senão estamos perdidos", ouvimos sua voz dizer, a certa altura do filme.
Sonhos de dança
Se as aparições de Pina Bausch em pessoa são o elemento mais dilacerante do documentário, nas obras filmadas em técnica tridimensional a artista está tão viva como ao criá-las, quase 40 anos atrás. De sua enorme produção foram selecionados trechos de A sagração da primavera (1975), Café Müller (1978), Vollmond (Lua cheia – 2006) e Kontakthof (Pátio de contatos).
Este último oferece a Wim Wenders a oportunidade de explorar a absoluta mobilidade temporal e espacial própria à sétima arte. Pois Kontakthof existiu em três versões: a original, de 1978, dançada pela trupe do Tanztheater, inclusive a própria criadora; a de 2000, com leigos de terceira idade; e a de 2008, com estudantes entre 14 e 18 anos. (Os trabalhos de ensaio dessa última versão foram, aliás, registrados por Anne Linsel no documentário Tanzträume [Sonhos de dança], lançado na Berlinale 2010.)
A montagem enfatiza o específico e o imutável em cada uma dessas encenações: é um senhor que em meio a uma volta se torna adolescente; é a menina que, ao levantar a cabeleira loura, tem 40 e tantos anos. São raros e preciosos momentos em que o cineasta se faz notar como tal, embora sempre reverencioso para com o objeto e sujeito do filme: a obra bauschiana.
3D or not 3D?
Neste terceiro round histórico da luta da cinematografia estereoscópica por um nicho permanente no mercado (os outros dois rounds foram na década de 50 e no final da de 70), PINA constitui um marco, segundo seus realizadores: trata-se tanto do primeiro filme de autor quanto do primeiro de dança a utilizar a técnica.
3D or not 3D, that is the question... mas uma questão que também não precisa ser respondida já. A justaposição com a metragem de arquivo de Café Müller, por exemplo, deixa óbvio onde o espectador de 2011 sai ganhando: a sensação de profundidade e a definição são infinitamente superiores, captam-se detalhes de textura da pele, cabelos, o suor dos corpos; por vezes tem-se a sensação de estar em meio aos dançarinos, dá quase para sentir o cheiro deles.
Entretanto, nos deslocamentos rápidos diante de fundo escuro, a cinematografia 3D também mostra suas (atuais) limitações, pois esses movimentos parecem pouco naturais, entrecortados. A impressão de perspectiva nem sempre é verossímil, por momentos as pessoas parecem figuras de papelão recortadas diante de um fundo. Talvez a técnica ainda precise amadurecer.
A quarta dimensão
Seja como for, a sensibilidade e empatia do documentarista com seu tema fica provada em minúcias como o registro sonoro de A sagração da primavera. Wenders faz ouvir, quase em pé de igualdade com a poderosa partitura de Igor Stravinsky, os ruídos no palco, os passos, o roçar de peles e tecidos, e, acima de tudo, as respirações.
Assim, após um clímax orquestral extenuante, o que se ouve, no lugar da pausa musical, é o resfolegar estertorado dos dançarinos. Um "detalhe" que aproxima, sim, o cine-espectador da experiência teatral. Mas que principalmente o lembra de que não se trata "só de dança", membros se movendo ao som da música, atléticos supermarionetes. Trata-se de uma arte que amorosamente expõe e examina seres humanos em estados extremos, suas fragilidades e paixões.
"Amor" era uma palavra frequente no vocabulário da coreógrafa, ao lidar com seus intérpretes, como eles próprios contam. Palavra tornada perigosa, de tão desgastada, mas que nesse caso ganha sentido novo e palpável. Amor é a quarta dimensão, que torna tão grandiosa essa homenagem cine-coreográfica dos amigos e colaboradores de Pina Bausch. A qual, asseguram, esteve presente com eles durante toda a filmagem.
Autoria: Augusto Valente
Revisão: Alexandre Schossler