Entenda o marco temporal, derrubado pelo STF
Publicado 30 de maio de 2023Última atualização 22 de setembro de 2023O Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou nesta quinta-feira (21/09) o chamado marco temporal, que estabeleceria uma nova regra para a demarcação de terras indígenas.
A tese do marco temporal estipulava que os povos indígenas teriam direito a reivindicar em processos de demarcação somente as terras que estivessem ocupadas por eles na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
Ao final, nove ministros votaram contra a tese. Luiz Fux e Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber, que votaram nesta quinta-feira, somaram-se a Dias Toffoli, Cristiano Zanin, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes na posição contrária ao marco. Nunes Marques e André Mendonça votaram a favor.
Os votos de Fux, Cármen Lúcia, Mendes e Weber consolidaram a derrota final do marco temporal, na 11ª sessão do plenário sobre a questão, pelo placar de 9 a 2.
"As áreas ocupadas pelos indígenas, e que guardam alguma vinculação com a ancestralidade e a tradição dos povos indígenas, ainda que não estejam demarcadas, elas têm a proteção constitucional", disse Fux, cujo voto selou a maioria necessária para barrar a tese.
Cármen Lúcia destacou em seu voto que barrar a tese do marco temporal é uma forma de "cuidar da dignidade étnica de um povo que foi dizimado, oprimido durante cinco séculos de história".
"Todos os que cuidaram da matéria posta neste recurso reconheceram a impagável dívida que a sociedade brasileira tem com os povos originários", observou a ministra.
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, comemorou a maioria no STF contra a tese. "Foram tantos anos de muitas lutas, muitas mobilizações, muita apreensão para este resultado. Porque, sim, é um resultado que define o futuro das demarcações de terras indígenas no Brasil", afirmou nos Estados Unidos, onde acompanha a comitiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Assembleia Geral da ONU.
O julgamento do tema pelo STF discute o caso concreto de uma terra indígena em Santa Catarina, mas tem repercussão geral e o veredito valerá para casos semelhantes.
No final de maio o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do Projeto de Lei (PL) 490/2007, sobre o marco temporal, que cria novas regras para a demarcação de terras indígenas. A matéria ainda precisa ser discutida e aprovada pelo Senado.
De acordo com a proposta, no futuro poderiam ser demarcadas apenas terras indígenas que estivessem tradicionalmente ocupadas por esses povos na data da promulgação da Constituição. O texto também retira a demarcação de terras da alçada da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e devolve a atribuição ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Os indígenas são contra a proposta.
O que diz o PL
A proposta estabelece que, para serem consideradas terras ocupadas tradicionalmente, é preciso comprovar "objetivamente" que elas, na data de promulgação da Constituição, eram habitadas em caráter permanente e usadas para atividades produtivas e necessárias à preservação dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural.
O texto prevê, ainda, entre outros pontos, a proibição da ampliação de terras indígenas já demarcadas, e que os processos administrativos que ainda não tenham sido concluídos sejam adequados à nova regra.
De acordo com a Constituição Federal, "são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens." A Constituição, no entanto, não determina nenhuma data como marco temporal.
Os ruralistas, que defendem a aprovação do PL, argumentam que o marco temporal daria maior segurança jurídica contra desapropriações de suas propriedades e para o agronegócio.
Argumentos contra o PL
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) afirma que a adoção do marco temporal limitaria o acesso dos indígenas ao seu direito originário sobre suas terras e que há casos de povos que foram expulsos delas algumas décadas antes da entrada em vigor da Constituição.
"O direito de povos indígenas a seus territórios não começa e nem termina em uma data arbitrária", justifica Maria Laura Canineu, diretora da ONG Human Rights Watch no Brasil. "Aprovar esse projeto de lei seria um retrocesso inconcebível, violaria os direitos humanos e sinalizaria que o Brasil não está honrando seu compromisso de defender aqueles que comprovadamente melhor protegem nossas florestas".
Na avaliação do Ministério dos Povos Indígenas, o texto pode "inviabilizar demarcações de terras indígenas, ameaçar os territórios já homologados e destituir direitos constitucionais, configurando-se como uma das mais graves ameaças aos povos indígenas do Brasil na atualidade".
Em audiência na Câmara dos Deputados, a assessora jurídica do Conselho do Povo Terena, Priscila Terena, disse que, caso o PL entre em vigor, impactará 156 terras, oito etnias e mais de 80 mil indígenas. "A aprovação é a declaração do nosso extermínio e o início da institucionalização do nosso genocídio", afirmou.
A presidente da Comissão da Amazônia e coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas, deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG), destacou que a proposta facilitaria, entre outros pontos, a grilagem de terras ao permitir obras – como construção de rodovias e hidrelétricas – sem consulta aos indígenas.
Os protestos contra o marco temporal também reverberam no exterior. Em abril do ano passado, um grupo de 29 parlamentares alemães enviou uma carta aberta aos membros do Congresso brasileiro expressando preocupação com o PL 490/2007.
A opinião do relator
Para o relator da proposta, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), o texto busca "deixar claro que os indígenas devem ser respeitados em suas especificidades socioculturais, sem que isso sirva de impedimento ao exercício de seus outros direitos fundamentais".
"Dessa forma, enxergando os indígenas como cidadãos brasileiros que são, pretendemos conceder-lhes as condições jurídicas para que, querendo, tenham diferentes graus de interação com o restante da sociedade, exercendo os mais diversos labores, dentro e fora de suas terras, sem que, é claro, deixem de ser indígenas", afirma o deputado.
Os argumentos da Defensoria
A Defensoria Pública da União (DPU) apontou no final de maio a necessidade de rejeição integral do projeto de lei na demarcação de terras indígenas. A recomendação foi encaminhada pelo defensor público-geral federal em exercício, Fernando Mauro Junior, ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Segundo o documento, a Constituição não pode ser utilizada como referência para a ocupação indígena, que tem parâmetros diferentes dos requisitos da posse do direito civil.
"O que se sabe é que o território – quando transformado em terra – é o espaço físico necessário para que determinada sociedade indígena desenvolva suas relações sociais, políticas e econômicas, segundo suas próprias bases culturais. É o elo subjetivo dos povos indígenas com seu território tradicional que permite serem quem eles são e, dessa feita, o espaço tem verdadeiro valor para assegurar a sobrevivência física e cultural, sendo por isso de vital importância para a execução dos seus direitos fundamentais", ressalta o documento.
Julgamento no STF
O caso em julgamento no STF trata da disputa pela posse da Terra Indígena Ibirama, em Santa Catarina. A área é habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani.
O estado de Santa Catarina argumenta que na data de promulgação da Constituição não havia ocupação na área. Por outro lado, indígenas argumentam que, naquela ocasião, haviam sido expulsos do local.
O procurador-geral do Estado de Santa Catarina, Márcio Vicari, defende o marco temporal e diz que a realidade de Santa Catarina é diferente da de outras unidades federativas. "Há localidades em que a demarcação envolve um latifúndio de um único proprietário, mas, no nosso estado, isso impacta na realidade de centenas de famílias, muitas delas de produtores rurais", afirmou, em audiência na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc).
Na época do início do julgamento do STF em 2021, cerca de 6 mil indígenas de 170 povos acamparam em Brasília, em uma área da Esplanada dos Ministérios, para protestar por seus direitos e contra o marco temporal.
A origem da questão
Toda a questão teve origem em 2009, quando um conflito entre indígenas e agricultores em Roraima chegou ao STF. Para resolver a disputa sobre a quem pertenceria de direito a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, os ministros argumentaram em favor do povo indígena — alegando que eles lá estavam quando foi promulgada a Constituição.
Se naquele caso a tese era favorável aos povos originários, o precedente ficou aberto para a argumentação em contrário: ou seja, que indígenas não pudessem reivindicar como suas as terras que não estivessem ocupando em 1988.
Em 2017, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu um parecer de que seria pertinente a tese do marco temporal. Como resultado, há dezenas de processos de demarcação de terra emperrados, à espera de uma definição do STF. Entre eles, o caso dos indígenas Xokleng, da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, em Santa Catarina, que volta a julgamento no STF.
Historicamente perseguidos pelos colonizadores, os remanescentes da etnia acabaram afastados de suas terras originais na primeira metade do século 20. Em 1996, contudo, conseguiram a demarcação de 15 mil hectares — que depois se expandiria, em 2003, para 37 mil hectares. Com o argumento do marco temporal, agora a área é reivindicada pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina.
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