Estreia de "Ninfomaníaca" causa frisson na Berlinale
10 de fevereiro de 2014Lars von Trier riu baixinho em frente às câmeras, mas não abriu a boca. Nem precisava. A provocação ele trazia estampada em letras grandes, grafadas em dourado sobre a camiseta preta. "Persona non grata", dizia a mensagem, sob o símbolo estilizado da Palma de Ouro, em Cannes. Um dos cineastas mais polêmicos dos últimos anos, Von Trier apareceu na coletiva de imprensa do Festival de Cinema de Berlim apenas para a sessão de fotos – e logo depois desapareceu.
Em 2011, durante o festival de cinema na Costa Azul, o dinamarquês provocou um escândalo ao se dizer nazista e afirmar que "entende" Hitler. Von Trier acabou banido do festival e, desde então, não dá declarações à imprensa. Mas suas produções continuaram. Agora, na Berlinale, ele apresenta a versão sem cortes do novo filme, que não está na competição.
A versão longa de Ninfomaníaca – Volume 1 mostra, em seus 145 minutos (a dos cinemas no Brasil tem 117 minutos), as confissões de uma mulher viciada em sexo. Como era de se esperar, a obra vem sendo bastante debatida e criticada. Já foi chamada de "pornô", "drama erótico, "o filme mais depravado da Berlinale". O longa traz cenas reais de sexo, nas quais os atores foram substituídos por dublês.
Mente perturbada
Assim que o filme começa a rodar, porém, as atenções se voltam para a telona. Sons difusos, neve, um jardim, gotas d'água que escorrem através de uma parede de tijolos vermelhos e se chocam contra a tampa de uma lata de lixo. Uma música da banda alemã Rammstein – Fühle mich, halte mich. Ich verlasse dich nicht ("Sinta-me, agarre-me. Eu não te abandono") – dá o tom. Uma mão ensanguentada aparece na tela.
A mão é de Joe (Charlotte Gainsbourg), uma mulher duramente ferida não apenas na carne, mas também na alma. Um homem doce e mais velho chamado Seligman (Stellan Skargard) a encontra e a leva com ele –Joe não quer ir para casa acompanhada nem por um policial, nem por um médico. Na casa de Seligman, ela toma banho, veste um pijama dele, toma um chá. E explica o que está acontecendo em sua vida.
Com um certo constrangimento inicial, que vai se desfazendo na medida em que se sente mais confortável, Joe conta sua história ao desconhecido – que se mostra um alterego de Von Trier – em um longo flashback. Seligman é um homem experiente, com largo conhecimento de religião, filosofia, da obra de Bach e técnicas de pesca. Ele sempre consegue organizar os pensamentos e relativizar as coisas, e até mesmo fazer comparações inusitadas.
"Eu sou uma pessoa ruim", afirma Joe. Mas da maneira como ela diz isso, e como ela olha, a afirmação não pode ser verdadeira. Rapidamente, Seligman percebe a frágil criatura que se encontra ali sob seus lençóis.
Trata-se de uma mulher que amou mais do que tudo o bondoso e poético pai, e desprezou a contida mãe. Que desde a infância sentia desejos cósmicos, uma vontade de viver, de uma vida com muitas cores. Mas como essa vontade manteve-se não preenchida, o desejo pela vida se perdeu. Restou apenas o sexo – calculista, frio e sem sentimento.
Sexo vazio
Seguidas deflorações, suportadas de maneira impassível; depois, uma aposta com a melhor amiga no trem: quem consegue mais homens? O prêmio para a vencedora: uma caixa de chocolates.
Joe (vivida na adolescente pela atriz Stacy Martin) sofre com a racionalidade do mundo e mostra, por meio de seus amantes, como para ela o mundo funciona. São muitos homens por dia, que ela, aleatoriamente, decide se vai flertar, ignorar ou pôr para correr.
A lógica dessa história vai sendo construída através de frequentes cenas de sexo. Corpos nus, sexo, diferentes situações – sexo puro e simples, sem muita reflexão. Sexo em torno do desejo de controlar um mundo onde tudo é sexualizado. De maneira sensível, poética e inteligente, com imagens fortes e um humor estranho, Von Trier conta a história de sua Joe em vários capítulos, por meio de flashbacks, associações e surpreendentes referências cruzadas.
A sorte pareceu estar perto da protagonista em pelo menos uma ocasião, quando ela realmente se apaixonou. Mas seu corpo não acompanhou o coração, e simplesmente não reagiu. De repente, não havia mais expressão nele. Amor e sexo, juntos, não caminharam juntos. Eles não caminham juntos nessa vida.
Após a apresentação para a imprensa, houve um certo frenesi. Mas Lars Von Trier estava lá realmente apenas para as fotos. Geralmente longe das apresentações à imprensa, o diretor do festival, Dieter Kosslick, também estava por lá. Em um sinal, comedido, mas significativo, de reverência ao cineasta dinamarquês.