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Exu para empretecer o pensamento

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
27 de abril de 2022

Neste profundamente negro Carnaval do Rio, Exu não ganhou sozinho. Com histórias de luta e resistência, a beleza e a cadência do samba foram usadas para interpretar o passado criticamente e fortalecer o antirracismo.

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Desfile da Grande Rio no Carnaval 2022
Com homenagem a Exu, Grande Rio foi a vencedora deste anoFoto: Mauro Pimentel/AFP/Getty Images

Existem muitas histórias sobre Exu, essa divindade que atravessou o Atlântico junto com os africanos escravizados e veio construir essa terra que chamamos de Brasil.

Exu é brincadeira, é movimento, é o tempo que vai pra frente e pra trás. Exu carrega, dentro de si e ao seu redor, grande parte de como muitos povos africanos enxergam o mundo. Uma maneira que espirala a existência, que enverga qualquer linha do tempo, que atravessa os planos, que dribla a morte, que reinventa a vida. Mas nem todo mundo sabe disso.

Infelizmente, parte das histórias contadas não falam de Exu, mas do medo que se construiu em torno dele, o orixá demonizado pelos brancos e pela cultura ocidental cristã, que não conseguiu e não quis entender que ele é motor, é axé, é energia. Por isso, precisamos falar mais dele.

Exu é muitas coisas ao mesmo tempo, porque ele é a encruzilhada. E dentre as tantas coisas que ele é, está a disputa pelos sentidos da história.

Para quem é versado em Exu, nos orixás e no universo que eles representam, não é surpresa que a primeira vitória da Grande Rio no Carnaval do Grupo Especial do Rio de Janeiro tenha vindo neste ano de 2022. É Exu abrindo caminhos.

Uma vitória que deve ser comemorada por diversos motivos. O primeiro deles está no fato de que foi a comunidade da Escola de Samba da Grande Rio – localizada em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense – que escolheu Exu e suas sete chaves como tema de enredo deste ano. Repetindo: foi uma comunidade que escolheu falar de Exu a partir da sua experiência com o divino, e também da vida terrena (nas suas alegrias e mazelas). O segundo motivo é tão bonito quanto o primeiro: Exu não ganhou sozinho. Ele veio abrindo espaço para empretecer o pensamento, uma necessidade premente na luta antirracista, como bem encenado pelo desfile da vice-campeã Beija-Flor – escola de samba de Nilópolis, também localizada na Baixada Fluminense.

E não parou por aí. Teve a simbologia dos baobás no samba da Portela. Teve a resistência negra cantada pelo Salgueiro. Teve a vida de Cartola comemorada pela Mangueira. Teve o Batuque do Caçador de Oxóssi versado pela Mocidade. Teve as lutas e histórias de resistência negra do Paraíso do Tuiuti. Teve a capoeira e Besouro Mangagá exaltada pela Império Serrano.

Para quem é atento às mandingas do mundo, não há dúvidas nem coincidências. Há Exu e as portas que ele abre.

É arrepiante constatar que a versão "pós-pandêmica" do maior espetáculo da Terra trouxe com tamanha intensidade essas histórias, cosmogonias, epistemologias, mitos, lendas, heróis e heroínas que continuam pouco ou nada presentes nos livros didáticos, mas que fazem parte da trajetória da maior parte da população que vive e constrói o Carnaval. E mais arrepiante ainda é saber que todos esses sambas-enredo são herdeiros de uma tradição centenária.

Para mim, o Carnaval de 2022 será sempre especial. O convite de desfilar na Beija-Flor acabou se mostrando como uma das muitas portas abertas por Exu, permitiu que minha estreia na Sapucaí acontecesse em plena Alvorada de São Jorge. Junto com a honra de estar junto de pessoas admiráveis, das mais diferentes áreas, pude ver na prática aquilo que sabia na teoria. Uma coisa é ler que o samba e o Carnaval são formas de resistência, de fazer política, de reinventar o mundo. Outra coisa é ver isso acontecendo, bem debaixo do meu nariz, literalmente.

Esse Carnaval foi profundamente negro e afro-brasileiro, não só pelos temas dos sambas-enredo. Mas porque esses temas revelam aquilo que também constitui o desfile na Marquês de Sapucaí: escolas (de samba) contando outras histórias, as suas histórias. Histórias que importam. Histórias negras que importam. Comunidades inteiras se organizando e fazendo da beleza e da cadência uma maneira crítica de interpretar o passado e, consequentemente de construir o futuro. É Exu matando o pássaro ontem com a pedra que jogou hoje. Que possamos aprender com ele.

Laroyê!

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Negros Trópicos

Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.