Fórum da Água sugere fundo que beneficie países pobres e ricos
12 de março de 2012
Entre os dias 12 e 17 de março, delegações de 180 países se reunirão em Marselha, na França, no maior evento mundial sobre a água, para discutir a situação da preservação hídrica no planeta. "Queremos buscar soluções para os problemas", ressalta o brasileiro Benedito Braga, presidente do Comitê Internacional do 6º Fórum Mundial da Água, do qual devem participar mais de 20 mil pessoas.
Em entrevista à DW Brasil, Braga explicou que uma grande preocupação são os quase dois bilhões de habitantes do planeta – quase um terço do total – ainda sem acesso a saneamento básico. Uma possível solução para ampliar esse acesso, especialmente em países mais pobres, seria a criação de um fundo com recursos oriundos dos países ricos, que atualmente enfrentam uma grave crise econômica.
Esses recursos não seriam simplesmente doados, como há anos vem sendo feito, mas repassados a empresas europeias, norte-americanas e japonesas para a construção da infraestrutura necessária. "Com isso você teria uma situação em que todos saem ganhando'", avalia Braga, ressaltando que esta ideia será debatida pela primeira vez. "A indústria do país doador vai se beneficiar, pois vai poder usar esses recursos. E também os países pobres vão se beneficiar, pois vão receber a infraestrutura", diz.
DW Brasil: Qual é o principal foco desta edição do Fórum Mundial da Água?
Benedito Braga: Concentramos o Fórum deste ano na busca de soluções para os problemas da água. O slogan é "Tempo de Solução". Do ponto de vista das prioridades, há 12 temas, e entre eles destaco o acesso à água potável e ao saneamento como um direito humano, além dos desastres relacionados à água – em particular inundações e secas, notadamente face a potenciais mudanças no clima que poderão trazer enchentes mais frequentes e severas e secas mais prolongadas. Também destaco a questão da segurança hídrica, particularmente em rios compartilhados por dois ou mais países. Além disso, muito importante será a discussão dos mecanismos de financiamento de governantes e de capacitação que serão necessários para que as metas associadas sejam atingidas.
De que maneira as dificuldades de acesso à água vêm crescendo nos últimos anos?
Em termos globais, houve progresso em relação ao acesso à água ao longo dos últimos dez anos, mas na África, no sudeste da Ásia e na América Latina o acesso é muito restrito. Com relação ao saneamento básico, estamos muito longe das Metas do Milênio, estabelecidas em 2000 pelas Nações Unidas e que visam reduzir à metade o número de pessoas sem acesso a água e saneamento. Hoje quase 2 bilhões de seres humanos não têm acesso a saneamento e entre 800 milhões e 900 milhões não têm acesso à água potável.
Todos os países que chegaram a uma situação boa com relação a saneamento começaram primeiro com bom acesso à água. Qualquer autoridade vai priorizar água a saneamento, é uma questão lógica. Associado a isso, há a questão do financiamento. Os sistemas de saneamento são dispendiosos, e nos países com dificuldades financeiras os governos precisam fazer opções.
Um dos pontos do Fórum é mostrar as vantagens de se investir em saneamento, pois esse investimento proporciona emprego e reduz pobreza. O saneamento é um dos setores que mais gera emprego para mão de obra não qualificada em países menos desenvolvidos. E traz benefícios de saúde pública. Doenças de veiculação hídrica são as que mais causam mortalidade infantil, que cai de forma expressiva quando você tem saneamento nas cidades. Outra vantagem seria limpar os rios urbanos.
O Fórum pretende cobrar mais responsabilidade dos governos nessas questões?
O Fórum reúne as classes política, técnica, científica e profissional. É uma oportunidade para aqueles que tomam decisões, para a classe política poder apreciar algumas opções, soluções para diversos tipo de problema. E utilizar essas soluções ou não. Não é intenção do Fórum puxar a orelha de ninguém. Cada um sabe onde o calçado aperta.
Nossa ideia é trabalhar de forma proativa, aproximando a classe técnica da política, porque muitas vezes o político quer fazer, mas não sabe como. Às vezes sabe-se qual é a saída, mas ela é complicada do ponto de vista ambiental ou social, e assim por diante. Juntar uma grande mostra de profissionais que trabalham nesses temas e trazem ideias inovadoras é uma boa oportunidade.
A classe política também poderá compartilhar experiências bem-sucedidas. Teremos políticos em nível nacional, atores locais, prefeitos, governadores. E também haverá uma conferência de parlamentares, pois sem leis e regulamentos não conseguimos implementar nenhuma política pública.
Em que medida o atual processo de urbanização no mundo preocupa?
Um dos principais temas são as mudanças no meio ambiente urbano. Estamos extremamente preocupados com o processo rápido de urbanização no mundo. Hoje, na América Latina, 85% da população vive em áreas urbanas. A Ásia está se urbanizando rapidamente. Em 2050, mais de 50% da população já será urbana – hoje o índice é de 30% na Ásia.
Esse processo vai criar uma situação crítica. Muitos dos problemas que temos hoje com inundações se devem à localização de habitações em áreas sujeitas a risco. Um exemplo é a região metropolitana de São Paulo, onde nas marginais dos rios Tietê, Pinheiros e Aricanduva não há mais nenhum espaço. E é assim em Bangladesh, em Mumbai, em todas as grandes cidades do mundo menos desenvolvido e dos emergentes, como Índia e Brasil.
Daí alguém diz: então é só tirar as pessoas da beira do rio. Existem favelas enormes em São Paulo na beira do rio. A prefeitura está trabalhando para reposicionar essas pessoas, mas não é simples, é uma questão social extremamente complexa. A urbanização é um problema que vai ficar ainda mais complicado no futuro, com as inundações causadas pelas potenciais mudanças no clima.
Estaria faltando investimento necessário em infraestrutura nesses casos?
Mecanismos inteligentes de financiamento existem. O Brasil, por exemplo, usa um programa chamado "Programa de compra de esgoto tratado" [oficialmente chamado de Programa de Despoluição de Bacias Hidrográficas] para a construção de estações de tratamento de esgoto. É uma ideia muito simples, mas que ninguém teve antes. Em vez de a Agência Nacional de Águas [ANA] conceder o empréstimo diretamente ao município, ela deposita na Caixa Econômica Federal a quantidade que julga necessária para a construção da estação de tratamento. Mas o município só pode ter acesso ao dinheiro quando a estação estiver em funcionamento. Se o município é muito pobre, ele pode pegar esse valor emprestado na própria Caixa, ou no BNDES, ou em qualquer outro banco estatal a juros bem baixos, construir a estação e depois receber o dinheiro do governo federal, que durante este tempo rende juros e tem correção.
Quais as vantagens desse mecanismo? Ele favorece o desenvolvimento de tecnologia, pois, se o prefeito conseguir com uma universidade um método de tratamento melhor do que o que a ANA pensou, ele pode receber mais dinheiro do que precisava. Também acaba com os "elefantes brancos" – não há vantagem alguma em prefeito começar a obra e não terminar, porque ele não vai conseguir o dinheiro. E ainda reduz a chance de corrupção, pois, se houver corrupção, ele recebe menos do que o que ele deveria receber. Este mecanismo será apresentado no Fórum como algo concreto para outros países que precisam construir estações de tratamento de esgotos.
Já na África isso seria mais complicado, pois nos países africanos mais pobres o governo federal não tem como subsidiar um município. Para estes casos existe uma ideia de criar um fundo dos países ricos, um fundo para a água e saúde. As companhias dos países mais ricos teriam a possibilidade de acessar esse fundo para prover os serviços e construir essa infraestrurura nos países mais pobres. Com isso você teria uma situação de "ganha-ganha". A indústria do país que está provendo esses recursos vai se beneficiar porque vai poder usar esses recursos. E também os países pobres vão se beneficiar, pois vão receber a infraestrutura e o treinamento necessários para a posterior manutenção e operação da infraestrutura implantada.
Isso ajuda a melhorar a situação nos países ricos, que hoje financeiramente não estão muito bem, e melhora a qualidade de vida das pessoas nos países mais pobres. Hoje o que temos é um processo de auxílio – o Foreign Aid – que é uma via de mão única: você dá o dinheiro e depois não tem muito controle de como ele é usado no país onde é feita a doação. Por isso esse processo hoje está patinando.
Os países ricos confrontam-se com situação financeira difícil – Europa, Estados Unidos, Japão – e estão relutantes em continuar com esse processo de foreign aid. A Espanha está cortando bilhões de euros nesse auxílio por conta de sua complicada situação interna. Esse fundo talvez pudesse ser uma forma de incentivar a indústria do país rico, movimentar essa indústria, e ao mesmo tempo ajudar os países pobres, em vez de simplesmente cortar a ajuda internacional. A criação desse fundo será discutida pela primeira vez aqui no Fórum.
Como será a participação brasileira no Fórum?
O Brasil tem aumentando gradativamente sua participação nos fóruns mundiais. No México, em 2006, éramos um grupo reduzido. Em Istambul, em 2009, chegamos perto de 150 instituições participantes. Agora teremos mais de 200 instituições. Já tive notícia de que nosso país pretende sediar o forum em 2018. O Brasil tem se destacado como um líder do ponto de vista da gestão de recursos hídricos. O país tem uma lei de águas extremamente avançada e uma instituição do porte da ANA para implementar a política nacional de gerenciamento de recursos hídricos. Conta ainda com uma gestão participativa, por meio dos comitês de bacias, nos quais a sociedade civil participa junto com os governos local e federal, para fazer a gestão da água. Então, evidentemente, quando acontece o evento máximo das águas no mundo, nada mais natural do que uma participação expressiva do Brasil.
Entrevista: Mariana Santos
Revisão: Alexandre Schossler / Soraia Vilela