A resistência do objeto
13 de junho de 2009No princípio estava Marx. O festival In Transit 09 tem como tema a "resistência do objeto", uma expressão cunhada pelo teórico da performance Fred Moten, por sua vez inspirado num aparte do filósofo alemão.
A certa altura de sua crítica dos bens e mercadorias, Karl Marx pergunta: "O que diriam os objetos, se pudessem falar?". Este foi o ponto de partida do brasileiro André Lepecki, curador das duas últimas edições do festival de artes contemporâneas realizado em Berlim.
A fina fronteira entre objeto e sujeito
Em 2008, ele enfocara a arte da performance, seus 40-50 anos de tradição e sua influência, não só sobre as artes cênicas em geral, como também sobre o cinema e a teoria. Foi quando o curador percebeu uma curiosa insistência sobre os objetos cênicos, por vezes quase ameaçando tomar o lugar do intérprete. E decidiu colocar o festival deste ano num diálogo com o anterior, explorando a "tênue fronteira entre objeto e sujeito".
Tal ponto de partida resulta numa mostra de caráter declaradamente político. Afinal, a obra do norte-americano Fred Moten recorda como o capitalismo e o colonialismo – em suas formas passadas ou atuais de racismo e sujeição – se baseia na redução sistemática de populações inteiras à condição de objetos.
Que cara pode ter a arte politizada em pleno início do século 21? Talvez já antecipando preconceitos e o temor, por parte do público, da secura acadêmica e/ou amargor "revisionista", Lepecki lembra, em seu convite à mostra de teatro e dança, que "a alegria é essencial a qualquer ato de resistência".
"Lembra de lembrar"
O papel central dado aos objetos resulta numa outra característica do In Transit 09: a escolha de obras no limiar entre a performance e a instalação.
Este é o caso de Remember to remember, da colombiana Maria José Arjona, que toma boa parte do foyer da Haus der Kulturen der Welt (Casa das Culturas do Mundo), onde se realiza o festival.
Vestida de branco, no meio de um corredor totalmente branco, a artista sopra inocentes bolhas de sabão. Só que, ao se chocar contra as paredes, por uma química misteriosa, elas as vão tingindo de rosado, cor que vai se concentrando por acúmulo até o vermelho-sangue.
Um processo de perda da pureza a que Arjona contrapõe as palavras "Lembra de lembrar", teimosamente escritas com giz branco nas paredes. A performance se encerra dias mais tarde, com Je ne regrette rien de Edith Piaf cantado em karaokê, até a voz acabar.
A revolta das crianças
Antes mesmo das apresentações, o cenário de Manifiesto de niños, do grupo argentino El Periférico de Objetos, estava aberto à apreciação do público: um amplo cubo branco cortado em todos os lados por uma estreita vitrine horizontal, convidando ao voyeurismo. Projeções de vídeo nas paredes externas; no interior, restos de uma orgia infantil: brinquedos espalhados pelo chão, fantasias.
Mas os grafites nas paredes contam histórias que não são brincadeira, registros de abuso infantil nas formas mais variadas. Desde o sujo e descabelado Struwwelpeter ("Pedro el Mugriento"), criado por um psiquiatra alemão em 1840 como antiexemplo da criança bem-educada; ou o menino do gueto na Polônia que ergue as mãos em gesto de rendição; até a pequena vietnamita correndo nua, queimada de napalm. E a Alice do País das Maravilhas, e o órfão vitoriano Oliver Twist.
Ao lado dessas figuras icônicas, advertências mais localizadas: Roberto Lanoscou, morto pelos militares da Argentina; Maria Mercedes Barrera, sequestrada com sua mãe em 1979. Um convite a castrar todos os turistas sexuais. Ou, na primeira pessoa: "Hace siete semanas que vivo aquí encerrado en el ghetto. No he visto mariposas".
El Periférico de Objetos, criado há 20 anos, entende o termo "teatro de manipulação" em duplo sentido: tanto literal – teatro de bonecos –, como figurativo – manipulação filosófica, existencial, política.
Voyeurismo macabro
A instalação Danse macabre II, de Allen S. Weiss e Michel Nedjar (EUA, França) tem igualmente algo de peep-show interativo. Também aqui um cubo, desta vez bem menor e de tábuas toscas, esquálido. O acesso visual ao interior dá-se somente através de estreitas frestas ou de "olhos mágicos" que distorcem e escurecem o pouco que se pode perceber.
Seus habitantes são fantoches, de trapos, barbante, feltro, retrós, poeira e outros materiais indizíveis. Seres grotescos, monstruosos, mas também um tanto cômicos ao, com seus olhos vazios, retribuírem a curiosidade dos voyeurs. Outros orifícios convidam a apertar botões de "play", desencadeando ao acaso uma colagem de ruídos, vozes adultas e infantis.
Nedjar é um dos mais destacados representantes franceses da art brut, arte autodidata e não-conformista. Sua procura pela "dança macabra" de nosso tempo é mostrada no In Transit em três versões: teatro de manipulação, instalação e palestra-performance.
Do butô à biblioteca
O grupo Sankai Juku foi quem abriu a edição 2009 do festival de artes contemporâneas. Lepecki revela ter ficado surpreso ao constatar que a companhia japonesa estaria se apresentando pela primeira vez na capital alemã ("Achei que eles vinham aqui todos os anos!").
Trata-se de um dos mais conceituados representantes do butô, forma de dança nascida no pós-guerra e que, para o curador, sintetiza muito da noção de "resistência do objeto". Suas raízes são, por lado, a negação das rígidas formas da dança tradicional japonesa, por outro, a simbiose com a Ausdruckstanz alemã.
O In Transit 09 vai de 11 a 21 de junho na Haus der Kulturen der Welt, em Berlim. Seu programa inclui artistas e teóricos dos cinco continentes, em performances, palestras, workshops, e até mesmo uma biblioteca interativa.
Autor: Augusto Valente
Revisão: Carlos Albuquerque