"Governos se beneficiam do vínculo entre polícia e crime"
17 de maio de 2017Uma sentença inédita da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA condenou o Brasil pela falta de investigação apropriada e não punição dos responsáveis por 26 mortes em dois episódios de violência policial no Rio de Janeiro, em 1994 e 1995. Os crimes ficaram conhecidos como Chacinas de Nova Brasília.
Mais de 20 anos depois, ninguém foi preso, julgado ou condenado pelas mortes. Esta é a primeira vez que o Brasil é julgado e responsabilizado na Corte por um caso de violência policial. Segundo a sentença, divulgada na sexta-feira (12/05) o Brasil deve acelerar e conduzir de modo eficaz o processo da primeira chacina e reabrir as investigações da segunda.
Para a socióloga Beatriz Affonso, diretora do programa do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) no Brasil, a sentença é importante do ponto de vista prático e imediato – no sentido de se buscar a condenação dos responsáveis – , mas, sobretudo, por revelar à sociedade a conivência de juízes e promotores com a violência policial.
“Acho que essa sentença vai funcionar como um motor impulsionador para tentarmos mudar algo no país”, afirma, em entrevista à DW.
O que representa esta sentença da Corte Interamericana da OEA para o Brasil?
Beatriz Affonso: Esta sentença traz a público, desnuda, a situação da violência institucional. Fica clara [na condenação do Estado brasileiro pela falta de investigação apropriada dos responsáveis pelas chacinas] a omissão de autoridades judiciais, de juízes e promotores, nos casos em que os crimes são cometidos por agentes públicos. Fica clara a impunidade desses agentes que saem por aí executando pessoas; esses criminosos nunca são investigados.
A sentença demonstra que existe um sistema de conivência, que não se trata de um caso isolado, de um promotor, de um juiz. Mais de 20 anos depois, os casos já passaram pelas mãos de mais de 50 promotores e juízes que não fizeram absolutamente nada. E foram casos conhecidos, monitorados no sistema internacional.
A sentença comprova que não são os policiais que tomam por si a decisão de pedir dinheiro ao tráfico ou ser violento – enquanto a cúpula fingia que não estava vendo. Durante muito tempo acreditamos que, quando um novo governo assumia, por exemplo, ele já recebia a polícia com aquele sistema de corrupção e violência. E como os policiais não têm bons salários, não daria para cobrar muitos limites da polícia. Então a cúpula toda fingiria não ver as atividades criminosas da polícia que, na verdade, funcionavam como um bico, um complemento salarial. O discurso era esse.
Mas não é isso que acontece, na verdade. De forma geral, pode-se dizer que governos entram e saem e, sem exceção, se apropriam e se beneficiam desse vínculo entre a polícia e o crime organizado. O sistema tem o envolvimento e o conhecimento de gente que tem o poder para mudá-lo.
A sentença reconhece também a violência sexual contra três mulheres – duas delas menores de idade na época – durante a primeira incursão à favela, com a determinação do pagamento de indenização às famílias. E ainda diz que a violência contra as mulheres mais pobres e negras é corriqueira nas comunidades, sem que ninguém intervenha...
Sim, exatamente. É a primeira vez que uma sentença demonstra tão claramente que os administradores da Justiça, que deveriam monitorar e dar limites à ação da polícia, não estão fazendo isso. E é uma aberração que o Estado admita [ao não condenar ninguém] que policiais podem estuprar mulheres numa incursão à favela e não sejam punidos, mesmo com o testemunho delas.
Que tipo de precedente essa sentença abre na questão dos autos de resistência – categoria em que costumam ser arquivados os homicídios cometidos por policiais em comunidades?
A sentença pede o fim dos autos de resistência. Pede que os casos de envolvimento de policiais na morte de civis sejam registrados como homicídios. O auto de resistência não pode servir para obstruir a investigação, para que os crimes não sejam investigados. Para um policial ser inocentado, tem de haver uma investigação e uma comprovação de que houve, de fato, um confronto. Alguns estados já mudaram isso, mas seria ótimo ter uma padronização nacional. Esta é uma bandeira antiga da sociedade civil, uma herança da ditadura.
Outra coisa importante da sentença é que ela pede que o Procurador Geral da República avalie se a investigação desses casos deve ser federalizada. Ou seja, ela passa um atestado de incompetência das autoridades estaduais. É como um alerta: se as autoridades estaduais não são imparciais, elas não podem estar a cargo dessas investigações.
E pede ainda mais transparência nas investigações, mais divulgação dos dados, o que ajuda na formulação de políticas públicas e também facilita o controle social da atividade policial. Então acho que a sentença vai funcionar como um motor impulsionador para que haja algum tipo de mudança.
Da forma como você coloca, é como se houvesse uma espécie de conluio entre policiais e agentes da Justiça. Como lutar contra isso?
Aquiescência é a palavra que eu prefiro usar. Mas, basicamente, é disso mesmo que estamos falando. Não é com uma sentença que vamos mudar uma cultura de séculos e séculos. Mas as coisas têm que ficar claras, ser faladas de forma mais transparente. Senão fica aquela coisa de “todo mundo sabe”, mas ninguém quer se desgastar com elite jurídica do país. Agora temos um instrumento (a sentença) que facilita esse questionamento.
Algumas pessoas argumentam que promotores e juízes seriam também vítimas das ameaças do tráfico de droga e/ou da polícia e por isso não conseguiriam dar procedimento às investigações. Isso ocorre de fato?
Isso é um absurdo. Não é um argumento razoável. Se um promotor não pode investigar ou um juiz não pode julgar, cabe às autoridades levar o caso para outro lugar, federalizá-lo. O Estado tem que controlar isso. Não dá para ter uma polícia que ameaça o Estado de Direito e ainda por cima ameaça o sistema judicial.