"Heimat" e seus vários significados
14 de fevereiro de 2018O recente anúncio da criação de um ministério para a "Heimat" acendeu na Alemanha um debate sobre o uso e as diferentes conotações da palavra, que gera associações bem diversas, possui difícil tradução e cujo conceito tem uma história antiga e atribulada.
No século 19, na Alemanha, ser heimatlos (apátrida, sem uma heimat) era um sinal de ausência de posses. Essas pessoas – chamadas forasteiros – não recebiam "um certificado de Heimat" que lhes permitisse assistência pública, como, por exemplo, em caso de doença. Em algumas regiões, quem era heimatlos não podia casar. Já aqueles que tinham uma Heimat, por exemplo a casa dos pais, podiam se considerar afortunados.
O conceito era, portanto, sobretudo jurídico e se referia a uma posse num determinado local. Mas esse é apenas um dos muitos significados de Heimat, uma palavra que não tem uma tradução exata para o português e significa sobretudo o local onde uma pessoa se criou e se sente em casa. O significado é semelhante ao de termos como "pátria", "terra natal" e "lar", mas vai além deles.
A força do interior
A Alemanha é historicamente marcada pela preponderância das regiões. Afinal, somente desde 1871 é que existe uma Alemanha unificada. Antes, e ao longo de séculos, o que predominou foi a divisão. Como consequência, o alemão sempre se definiu menos como "cidadão do Estado alemão" e muito mais como oriundo da região onde ele se criou: a Baviera, a Suábia ou o Hunsrück. A identificação com essa Heimat sempre foi forte e determinante.
Ainda hoje a Alemanha é, na comparação com outros países europeus, como a França, pouco centralizada. Não há "a" capital, e o resto é interior. Há vários centros regionais, como Berlim, Frankfurt, Hamburgo e Munique, espalhados por todo o país.
No passado recente, entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a Reunificação, essa situação foi intensificada com a ausência de uma capital de fato no lado ocidental. Bonn era a sede do governo, mas uma cidade de porte médio e não uma metrópole como Londres e Paris. A Berlim reunificada ao menos tenta recuperar esse papel.
A força do interior se evidencia também num outro aspecto: os 16 estados federais não são apenas unidades administrativas, mas o lar de identidades em parte seculares, como os bávaros. Além disso, as províncias também costumam ser o lar (a Heimat) de empresas em geral desconhecidas, mas que, no seu setor, são líderes mundiais. Não raro a sede delas fica em pequenos vilarejos.
Palavra aviltada
Mas, além da conotação positiva, a palavra Heimat também tem outros significados. Os nazistas, com sua ideologia calcada em sangue e terra, aviltaram o sentido do termo. No nazismo, apenas os membros da "raça alemã" faziam parte da "pátria (Heimat) alemã". Os outros, como os judeus, foram aniquilados dentro do seu próprio país. Sob o manto da Heimat iniciou-se uma guerra com a qual territórios estrangeiros e as minorias alemãs que os habitavam seriam conduzidas de volta ao "Reich".
Essa guerra fez milhões de vítimas. Isso inclui aqueles que, depois da guerra, passaram a viver como Heimatvertriebene (banidos da Heimat) em um dos dois estados alemães. Suas associações focavam na perda da Heimat e se dedicavam a um culto regressivo da memória. Gerações mais jovens não querem ter nada que ver com isso. Mesmo o tradicional ensino de Heimatkunde (história e geografia locais) desapareceu das escolas, ao menos no lado ocidental.
Retomada
O primeiro a devolver um significado político ao conceito de Heimat foi o partido populista Alternativa para a Alemanha (AfD), fundado em 2013. Mas, mais uma vez, o termo servia como palavra de ordem para a Heimatschutz (proteção da Heimat), ou seja, como defesa contra o multiculturalismo e os refugiados.
Aos poucos, os demais partidos alemães seguiram o exemplo e passaram a se dedicar a uma Heimatpolitik, ainda que dentro de concepções completamente diferentes. Agora, a ideia é até mesmo criar um ministério para a Heimat.
Especialistas veem na retomada do uso do termo uma reação à globalização, à qual Heimat seria uma espécie de contraponto. "As pessoas têm a impressão de que o mundo virou uma aldeia, só que elas não podem viver nessa aldeia", comenta o professor Edoardo Costadura, da Universidade de Jena.
Esse fenômeno começou já na virada do século, por exemplo na elevada tiragem da revista Landlust, que vende uma imagem idílica da vida no campo, ou na crescente oferta de produtos regionais nos supermercados. Quando a política passa a se ocupar de Heimat, ela está apenas reagindo a uma tendência que já existe há um certo tempo.
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