História de Christiane F. vira minissérie
19 de fevereiro de 2021No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, o drama de uma adolescente identificada como Christiane F. ganhou as manchetes na Alemanha, deixando o país em estado de choque. O livro autobiográfico de 1978 Wir Kinder vom Bahnhof Zoo (traduzido no Brasil para Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída) foi considerado escandaloso, mas chamou a atenção sobre como a sociedade alemã estava falhando com suas crianças.
Embora o livro tenha sido realmente escrito por dois jornalistas da revista alemã Stern, com base em dias de entrevistas com a protagonista Christiane Felscherinow, a narrativa em primeira pessoa se revelou um relato perturbador da realidade do uso de drogas e suas consequências.
Uma vida devastada
Com a atenção desviada pela Guerra Fria e pelo terrorismo de extrema esquerda, a sociedade alemã dos fins dos anos 1970 ficou bastante abalada ao saber da existência de crianças como Christiane F.: aos 12 anos de idade, já fumava haxixe. Aos 13 anos, injetou pela primeira vez heroína. Aos 14, prostituía-se para financiar o vício.
Aos 6 anos de idade, Christiane mudou-se do norte da Alemanha para Berlim, onde morava em Gropiusstadt, colosso habitacional proletário de 18,5 mil moradias no bairro de Neukölln. Com a separação dos pais, sua segunda casa logo se tornou a Bahnhof Zoo, ou estação ferroviária do Jardim Zoológico, lugar de encontro de traficantes e adolescentes que se prostituíam para financiar o vício. Além de haxixe e LSD, a heroína era a droga do momento.
Christiane tinha somente 15 anos ao ser entrevistada pelos repórteres, mas também tinha muita coisa para contar, e o fez minuciosamente. Traduzido para 15 línguas, o livro virou best-seller em mais de 30 países. Em abril de 1981, estreava o filme homônimo dirigido por Ulrich Edel, estrelado por Natja Brunckhorst no papel de Christiane e com a participação de David Bowie. Sua música Heroes tornou-se, praticamente, a canção-tema do filme.
Tanto o livro quanto o filme levantaram questões sobre como uma próspera sociedade alemã-ocidental poderia permitir que seus jovens caíssem em tal estado de desespero e miséria.
Algumas pessoas acusaram os produtores da versão cinematográfica de glamourizar esse estilo de vida nas telas de cinema, simplesmente reduzindo-o a uma espécie de conto de transição para a vida adulta.
Mesmo assim, o livro ficou 95 semanas no topo das listas de mais vendidos da Alemanha, e o filme foi um dos maiores sucessos internacionais da história do cinema alemão. Mas a vida continuou difícil para Christiane Felscherinow nas décadas seguintes. Ela chegou a lançar outro livro suas experiências posteriores, no qual descreve que nunca de fato se livrou completamente do vício.
Adaptação da Amazon Prime
O serviço de streaming Amazon Prime revisita a história mundialmente famosa de Christiane F. por meio de uma minissérie com oito episódios, disponibilizada nesta sexta-feira (19/02).
A atriz austro-australiana Jana McKinnon interpreta o papel principal. O produtor de cinema Oliver Berben, filho da famosa atriz alemã Iris Berben, não poupou custos ao retratar os altos e baixos do uso de drogas ao longo da série que se estende por sete horas.
Mas será que a geração do streaming ainda pode ficar chocada, comovida ou até mesmo seduzida pela história de Christiane F. - ou o público viu coisas piores nos 40 anos desde o lançamento do livro?
Um conto moral alemão
Na Alemanha, Christiane Felscherinow se tornou uma celebridade relutante depois de compartilhar sua história em 1978. Kai Hermann, um dos dois jornalistas da Stern que registrou o testemunho de Christiane, disse que essa era uma "história da qual você simplesmente não podia escapar. É algo que sempre volta assombrar (o leitor)."
De certa forma, a triste realidade de Christiane também refletia a vida dentro dos limites do Muro de Berlim à época: suas tentativas de escapar das limitações da sua própria existência foram encaradas como um reflexo das pessoas presas na cidade isolada do resto da Alemanha Ocidental.
Mas muita coisa mudou desde então: o Muro de Berlim caiu há muito tempo, a Alemanha assumiu um papel mais importante no cenário global - e o livro de Christiane F. tornou-se material de leitura obrigatória em muitas escolas alemãs, como um conto moral de advertência sobre o risco de consumir drogas.
Nas últimas décadas, temas como abuso de drogas também se tornaram comuns na televisão e no cinema com obras como o filme Trainspotting, de Danny Boyle, e Réquiem para um Sonho, de Darren Aronofsky.
Sexo, drogas e rock'n'roll?
O filme original de Uli Edel também foi aclamado internacionalmente por aspectos artísticos, como ao mostrar David Bowie dando um show em Berlim. A participação do cantor ajudou a atrair o público. Na vida real, o próprio Bowie lutou contra o vício em drogas por anos.
Em uma entrevista de 2013 para a Vice, Christiane Felscherinow apontou que sentiu uma ambivalência com essas manobras de marketing: "Você é admirado, mesmo que use drogas, contanto que seja especial - um músico ou um pintor. Mas se você for um simples usuário de drogas e não tiver nenhum desses talentos, é considerado inútil pela sociedade."
Vício
A versão da Amazon Prime da biografia de Christiane F. depende mais do "efeito binge" das séries contemporâneas. A série aprofunda as questões levantadas pela história, explora as relações entre os personagens e lança a pergunta incômoda: "Onde tudo deu errado?"
Paradoxalmente, a série aborda a questão do vício, tornando o público viciado na própria história de Christiane F.. Há cortes rápidos, transições bruscas para imitar a experiência de estar sob o efeito de drogas psicoativas, mas a obra evita fazer proselitismo sobre os males causados por essas substâncias.
Em vez disso, a série retrata o contraste entre o tédio que acometia a jovem - que ela apontou como a causa que a levou às drogas - e a fuga que essas substâncias ilegais lhe proporcionaram. A série deixa espaço para que os espectadores tirem suas próprias conclusões.
Christiane também disse na entrevista da Vice de 2013 que as drogas simplesmente deram a ela uma válvula de escape para sua educação disfuncional: "Eu era tão solitária quando criança. Eu só queria ter a sensação de pertencimento; estava lutando com o mundo."
E essa luta é algo com que qualquer pessoa - jovem ou velha - provavelmente pode ter empatia. O produtor Oliver Berben disse que a história é sobre "como os jovens tentam encontrar seu lugar neste mundo".
"E este é um mundo difícil e brutal."