Igualdade no campo pode reduzir fome e aumentar PIB
20 de abril de 2023Reduzir a desigualdade entre homens e mulheres no campo poderia aumentar a renda de 58 milhões de pessoas e incrementar o Produto Interno Bruto (PIB) do mundo em 1 trilhão de dólares. No entanto, segundo o relatório O Estado das Mulheres nos Sistemas Agroalimentares, recém-divulgado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e que traz um panorama geral dessa população nos últimos dez anos, as disparidades ainda são grandes.
O estudo da FAO mostra que as mulheres recebem só 0,82 dólar para cada 1 dólar pago aos trabalhadores do gênero masculino nesses sistemas – que englobam toda a produção de alimentos, desde o plantio, passando pelo manuseio e a distribuição.
De acordo com Úrsula Zacarias, ponto focal para gênero da FAO no Brasil, essa situação se agravou na pandemia – 22% das mulheres perderam os empregos, e só 2% dos homens.
Além disso, as mulheres sofrem de maior insegurança alimentar moderada ou grave – que globalmente era 1,7 ponto percentual superior à dos homens em 2019, e a diferença chegou a 4,3 pontos percentuais em 2021.
"Muitas vezes, as mulheres só conseguem um trabalho de meio período porque têm as crianças para cuidar, além de não terem muitas oportunidades de capacitação de acesso à educação, a tecnologias, e isso as afeta drasticamente", diz Zacarias.
DW Brasil: Pelo menos simbolicamente, o papel da mulher na história da humanidade está diretamente ligado à alimentação, tanto no preparo e produção quanto na garantia da comida. Não é uma contradição serem justamente as mulheres as que sofrem de maior insegurança alimentar?
Úrsula Zacarias: As mulheres sempre trabalharam no campo, nos sistemas alimentares. Só que no decorrer das transformações mundiais, as políticas, programas e até mesmo as tecnologias foram se adaptando para um mundo mais masculino.
Por exemplo, hoje, conseguimos identificar na lavoura tratores e até mesmo as ferramentas utilizadas durante a produção que são mais adequados para o biotipo masculino. As mulheres sempre estiveram no campo, mas sempre foram invisibilizadas.
O trabalho das mulheres sempre esteve ligado às tarefas domésticas, mas isso sempre foi considerado ajuda, nunca algo reconhecido, valorizado e visibilizado como um trabalho formal, que gera renda, assim como o trabalho que os homens exercem.
O que precisa ser feito urgentemente para acabar com essa diferença entre os gêneros nos sistemas agroalimentares?
O empoderamento das mulheres neste momento que o mundo se encontra é fundamental para que se alcance resultados econômicos e sociais. O relatório indica que os benefícios dos projetos que capacitaram mulheres são maiores que aqueles que apenas integram o gênero.
Hoje, mais da metade do financiamento bilateral para agricultura e desenvolvimento agrícola já integra o gênero feminino, mas só 6% desses projetos em vigor tratam a mulher como fundamental [no processo].
Podemos pensar o seguinte: se metade dos produtores de pequena escala se beneficiasse desse tipo de desenvolvimento, isso aumentaria significativamente a renda de mais de 58 milhões de pessoas e aumentaria a resiliência [a crises, como a climática ou a pandemia] de 235 milhões de pessoas.
A FAO estima que eliminar essa diferença de gênero na produtividade agrícola e a diferença salarial que ainda encontramos nos empregos do sistema agroalimentar, isso aumentaria o Produto Interno Bruto (PIB) global em quase 1%, o que corresponde a esse 1 trilhão de dólares.
Com isso, teríamos uma redução global da insegurança alimentar em cerca de mais ou menos 2 pontos percentuais, o que corresponde a 45 milhões de pessoas.
E quais são os obstáculos neste momento para a igualdade de gênero nos sistemas agroalimentares?
Os sistemas agroalimentares são grandes empregadores de mulheres, e uma importante forma de sustento em vários países. Globalmente, 36% das mulheres trabalhadoras estão empregadas em sistemas agroalimentares, principalmente no setor primário. E a força masculina é de 38% de homens.
Apesar dessa aproximação de números, as mulheres tendem a ser marginalizadas, com condições de trabalho que tendem a ser piores.
Há irregularidades, e também o trabalho que é exercido em casa, de cuidadora, o trabalho social que elas desenvolvem, nada disso é computado. Muitas vezes, as mulheres só conseguem um trabalho de meio período porque têm as crianças para cuidar, além de não terem muitas oportunidades de capacitação de acesso à educação, a tecnologias, e isso afeta drasticamente as mulheres do campo.
O estudo também diz que a insegurança alimentar das mulheres aumentou muito na pandemia – inclusive na região da América Latina e Caribe, onde a diferença de insegurança alimentar das mulheres é 11,3 pontos percentuais maior que a dos homens. Quais as causas desse desdobramento?
O relatório mostra que 22% das mulheres fora da agricultura perderam seus empregos no primeiro ano da pandemia, em comparação a 2% dos homens.
Tivemos um aumento da insegurança alimentar, da violência, principalmente contra as mulheres que passaram a ficar mais tempo em casa, que ficaram mais vulneráveis, então todas essas desigualdades atrasam as mulheres em todos os níveis.
Ainda temos a falta de oportunidade de acesso dessas mulheres a políticas públicas, principalmente acesso a crédito e à terra, porque na maior parte dos países ainda existe a cultura de que as terras devem ser nominadas aos homens.
No caso do Brasil, podemos falar que houve mudanças nos últimos dez anos para essa população?
Houve sim avanços. Alguns países, principalmente na América Latina, se voltaram para o enfrentamento desses desafios, para trabalhar nessas lacunas estruturais. Aqui no Brasil não é diferente.
É um dos poucos países na região que tem um censo agropecuário com um número especifico, e esse trabalho está sendo visibilizado na parceria da FAO com a Embrapa e o Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, chamado de "Observatório das Mulheres Rurais no Brasil", no qual trabalhamos esses dados para sabermos quais são as lacunas, os direitos que elas não acessam, o que de fato acontece no campo e como é a vida dessas mulheres.
Também temos aqui políticas muito bem-sucedidas, como assistência técnica, extensão rural, crédito mulher-rural. Mas ainda há muito o que se aprimorar para que elas possam estar incluídas nas políticas.
O que a FAO recomenda para os governos, em termos de políticas públicas, para reduzir essa desigualdade de gênero nos sistemas agroalimentares?
A melhoria do acesso dos recursos a crédito e à tecnologia é uma ação que precisa ser tomada o mais rápido possível. É também preciso ampliar as políticas públicas para que as mulheres tenham acesso à terra, para serem as donas de suas propriedades e, assim, gerar renda, empoderamento econômico e melhoria de vida do local.
A questão da igualdade salarial está sendo debatida mundialmente. Grande parte dos países tem uma lei ou colocou isso em sua Constituição. Mas há ações que podem ser intensificadas para que possamos atingir isso a longo prazo.
A FAO acredita que a igualdade salarial é uma das fontes mais essenciais para combater a fome. É uma medida mais que urgente.
Outras ações que resultam em bastante melhoria na vida das mulheres são políticas sociais, como ter mais creches e escolas integrais, para que elas tenham mais oportunidades de trabalhar, para que não fiquem sempre condicionadas ao cuidado das crianças. Se temos creches que recebem programa de alimentação escolar, as crianças são alimentadas e nutridas de uma forma garantida e isso já é um alivio para essas mães.
Por fim, é preciso uma garantia de proteção. Existe muita violência contra as mulheres, o que foi intensificado na pandemia. Essas medidas que asseguram direitos devem ser mais visibilizadas, mais informadas. Precisamos levar informação para o maior número de mulheres e meninas que passam por esse tipo de situação.