Imigrantes de Hanau e a normalidade após o atentado
23 de fevereiro de 2020Dois dias após o atentado na cidade alemã de Hanau, algo assim como o quotidiano parecia ter retornado às ruas em torno da praça central Heumarkt. A pouca distância do bar Midnight, ainda interditado com fita policial, gente de idades e origens diferentes passa pelas padarias, drogarias e bancos.
A apenas poucos metros do local do crime, está a mercearia de Mustafa Bayram. O turco-curdo de 59 anos está sentado, cercado por baclavas, tâmaras empacotadas e sementes de girassol, atrás de um balcão de vidro. "Já estou aqui já cinco anos. Não tenho medo. Por que deveria, se me entendo bem com os clientes, com as pessoas?"
Desde 1978 ele vive na Alemanha. Fora um furto, nunca lhe aconteceu nada. Quando uma jornalista lhe perguntou se gostaria de proteção policial para sua loja, depois do atentado supostamente racista que matou nove pessoas, Bayram negou. "Para que vão vir policiais e esperar por mim 12 horas lá fora? Quem tem medo, que fique em casa, não pode mais se levantar e sair. Se acontecer alguma coisa agora, aconteceu. Mas não acredito que aconteça."
Diante do ato criminoso da quarta-feira (19/02), o ministro do Interior Horst Seehofer anunciou uma maior presença policial em toda a Alemanha. A Polícia Federal apoiará as autoridades criminais em aeroportos, estações ferroviárias e fronteiras. Mesquitas e outros "estabelecimentos sensíveis" seriam mais fortemente vigiados, declarou o político social-cristão. O Conselho Central dos Muçulmanos na Alemanha exigiu "proteção visível" diante das mesquitas.
"Mostrar o que é realmente a Alemanha"
Para Saban Sakalikaba, as medidas de segurança reforçadas são bem-vindas, pelo menos em parte. O cabeleireiro grandão, de 32 anos, trabalha num salão gerenciado por seu irmão. Ele oferece chá com especiarias, senta-se para uma breve entrevista na parte de trás do salão. "Agora, quando alguém entra, a gente olha com cuidado, pois o que aconteceu nos bares de shisha também poderia acontecer aqui", explica
Sakalikaba nasceu na Turquia e vive desde os nove anos na Alemanha. Depois do atentado ocorrido a apenas alguns minutos a pé de seu local de trabalho, ele desejaria "que houvesse mais proteção nas lojas, talvez mais policiais nas ruas, que nas próximas semanas imperasse um pouco de segurança".
Ele nunca poderia imaginar que, em sua cidade, que ele denomina "multiculti", alguém pudesse matar nove cidadãos por motivos racistas. "Aqui é um salão de cabeleireiro turco. Vem gente de todas as nações: alemães, italianos, turcos, curdos, árabes, africanos; nos damos bem com todos."
Também a colegial de origem afegã Safia Shams, de 18 anos, nunca teria esperado um atentado como o da noite de quarta-feira, "justo numa cidade como Hanau, conhecida por sua diversidade e jeito multicultural". No dia seguinte ao atentado, alguns de seus colegas não tiveram coragem de ir à escola. Porém "justamente agora devemos mostrar força", as pessoas precisam demonstrar que são "contra o ódio, contra o terror", insiste.
Em relação aos comentários do partido populista de direita Alternativa para a Alemanha (AfD), a jovem, que após o curso médio pretende estudar Direito ou Odontologia, acha que "se deve fazer muito mais contra eles, e mostrar o que é realmente a Alemanha, o que são os valores alemães, o que é a nossa democracia e a nossa liberdade".
Neta de alemães que emigraram para o Afeganistão, Shams conhece bem o racismo do dia a dia. Até hoje ela nota "que para mim é muito mais difícil encontrar um trabalho de estudante ou os olhares e comentários na rua". "Infelizmente isso ainda existe, mesmo numa cidade como Hanau, tão próxima de Frankfurt, onde vivem muitos de origem imigrante."
"Somos todos Ferhats"
Na associação curda numa zona industrial a cinco minutos de carro da rua central Heumarkt, no fundo de uma sala onde se oferecem refrigerantes e frutas, sobre uma mesa está o nome "Ferhat", formado com velinhas de chá. Acima veem-se fotos de Ferhat Unvar, de 23 anos, morto a tiros ao ir comprar cigarros numa lojinha do bairro Kesselstadt.
Só aos poucos a comunidade vai se dando conta da extensão da tragédia, "que sentimos falta das pessoas, que elas se foram para sempre", diz Aydin Yilmaz, primo do pai de Unvar. "Não vamos mais escutar essa balbúrdia de brincadeira e riso, sentar juntos, passar noites em boa companhia nos bares de narguilé."
Ferhat, que gostava de jogar futebol e deixa dois irmãos e uma irmã, era pacífico e cosmopolita, "um rapaz que tinha visões, uma concepção do próprio futuro", conta. Há pouco ele acabara o curso de técnico de calefação e pretendia trabalhar como autônomo.
Enquanto Yilmaz fala, ouve-se um choro alto e penetrante: numa sala ao lado estão outros familiares da vítima. "Ferhat queria fazer algo de bom para Hanau. O avô dele construiu as ruas da cidade, como trabalhador imigrado. Ferhat queria que as pessoas tivessem calor em casa." Agora, a própria casa dele está fria.
A sensação de segurança de Yilmaz, enquanto cidadão de origem estrangeira, mudou: "Quando estamos em apuros, claro que chamamos a polícia, e ela vai continuar sendo nossa amiga e protetora. Mas acho que é muito melhor nós tomarmos conta uns dos outros, coletivamente: o vizinho alemão, o amigo alemão, a família afegã, todos juntos."
Yilmaz tem "inteira confiança" que as autoridades, o governo federal, a Justiça alemã se encarregarão da investigação do ato sangrento. Como tantos outros, ele urge à coesão social: o mais tardar após o atentado de Hanau, é preciso que todos tenham consciência da seriedade da situação, que se deve agir: agora soou a hora da solidariedade.
"A gente nota, sim, que estão tentando nos dividir, mas não vamos deixar. Seguimos sendo abertos para o mundo, sendo cidadãos deste país. Somos todos Ferhats, somos todos uns como os outros. Estamos aqui e vamos continuar a conviver uns com os outros – pacificamente."
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