Intervenção às pressas gera dúvida sobre intenção e eficácia
19 de fevereiro de 2018Rio de Janeiro, 2009. O mais famoso cartão-postal do Brasil vive um boom econômico turbinado pela produção de petróleo e o bom momento da economia. A cidade vira um canteiro de grandes obras públicas. Em outubro do mesmo ano, é escolhida como sede dos Jogos Olímpicos de 2016. A popularidade da sua elite política alcança as alturas. Novos projetos na área de segurança pública prometem implantar forças de polícia cidadã nas favelas e derrotar a violência que aflige a cidade há décadas. O Rio de Janeiro é o laboratório e vitrine de um país em ascensão.
Mais de oito depois, os jogos parecem uma lembrança distante. O Estado que compartilha o mesmo nome da cidade está no segundo ano de estado de calamidade pública. Quebrado, não consegue pagar os salários dos servidores. Parte da sua elite política está na cadeia por suspeita de corrupção. O índice de homicídios na cidade retrocedeu para os altos números de 2009, alcançando 40 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes. A promessa de implementar uma polícia cidadã naufragou, e as favelas ainda são palco intenso de violência envolvendo traficantes e milícias. Não há nem mesmo dinheiro para contratar novos policiais. O Rio é a vitrine da falência.
Na última semana de Carnaval, período em que a cidade costuma reforçar a segurança para proteger os turistas, a precariedade da situação ficou mais uma vez evidente com o registro de arrastões, assaltos e agressões. Três policiais morreram. Alguns dos crimes ocorreram em alguns dos bairros mais ricos da cidade, como Ipanema e Leblon.
Intervenção sem plano concreto
Só que as estatísticas do último Carnaval indicam que o número de crimes cometidos não foi acima da média dos últimos dois anos, período em que a situação da segurança da cidade voltou a piorar. São parte de um problema que se arrasta há anos. Há outros estados em situação ainda pior que o Rio.
Mas os episódios acabaram sendo usados como uma gota d'água. O governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão (MDB), disse que seu governo não tinha condições, sozinho, de deter a violência.
Em resposta, o presidente Michel Temer – colega de partido de Pezão – anunciou uma medida extrema e inédita desde a redemocratização do país, nos anos 80: uma intervenção federal na área de segurança pública de um estado. Saiu o secretário de Segurança do Rio de Janeiro. No seu lugar, Temer nomeou um general do Exército, que vai passar a comandar todas as corporações policiais, bombeiros e administração penitenciária do estado. O governo federal prometeu ainda enviar contingentes das Forças Armadas para patrulhar as ruas e comandar operações contra o crime organizado até o fim de 2018. O decreto presidencial foi aprovado na Câmara dos Deputados na madrugada desta terça-feira (20/2) por 340 votos a 72.
A iniciativa parece ter pegado de surpresa até o Exército. O general nomeado como novo czar da segurança, Walter Souza Braga Netto, disse que soube da decisão poucas horas antes do anúncio oficial. Até agora nem o governo federal nem as autoridades do Rio apresentaram um plano com ações concretas para combater a violência e resolver as deficiências do aparelho de segurança do estado, como o combate à corrupção na polícia.
Esse descompasso entre o anúncio bombástico e a falta de um plano efetivo fez surgir dúvidas sobre as reais intenções do governo Temer.
Razões duvidosas
Segundo Thomas Manz, diretor da Fundação Friedrich Ebert no Brasil, a intervenção e a presença dos militares vai passar longe de uma solução para o problema. "A intervenção serve a um propósito político, e não de segurança. O governo Temer criou um fato novo para desviar as atenções da sua impopularidade e seu fracasso em aprovar reformas, em especial a da Previdência", disse Manz.
De fato, qualquer grande reforma, como a da Previdência, deve ser congelada enquanto persistir a intervenção. Isso porque qualquer alteração constitucional é proibida, segundo a carta magna, enquanto perdurar uma intervenção federal num Estado. "Temer encontrou uma desculpa para esconder que não tinha os votos necessários. Ao mesmo tempo, passa a lidar com um assunto que gera bastante interesse e apoio entre os brasileiros: a segurança."
Segundo pesquisa Datafolha, a aprovação de Temer alcança apenas 6%. Já um levantamento encomendado pelo próprio governo mostrou que só 14% dos brasileiros querem mudanças na Previdência.
De acordo com Manz, o fato de o governo ter apenas decretado a intervenção nas policiais do Rio, e não em todo o falido aparelho estatal do Rio de Janeiro – controlado pelo seu aliado Pezão –, demonstra que Temer não está interessado em ir a fundo no problema. "Hoje há um desgoverno no Rio. Seria preciso a saída de Pezão e a eleição de um governo mais eficiente. Em vez disso, insistem que os militares vão sempre salvar a situação", disse.
Para Marilene de Paula, coordenadora de Projetos de Direitos Humanos da Fundação Heinrich Böll no Brasil, a ausência de um plano concreto na intervenção é preocupante. "Fala-se nos militares atuando na inteligência de operações. Não é tão simples montar um aparelho de coordenação entre Exército e polícia do zero. Não parece haver planejamento", disse.
Já Manz também vê com a preocupação o fato de expandir o papel dos militares em operações de policiamento. "Eles não são treinados para isso. Experiências similares no mundo mostram que a violência não diminui no longo prazo e que a população pobre acaba sendo vítima desse aparelho de guerra estatal."
Segundo Marilene de Paula, o uso dos militares para apagar incêndios tem o efeito de radicalizar o debate público. "Que tipo de mensagem isso passa? Ganha espaço apenas o discurso da ordem. Os problemas desse Rio pós-megaeventos são mais amplos, como demonstra a falência e as revelações da Operação Lava Jato, mas não se fala em eficiência do Estado", completou.
Histórico
O uso de militares em operações de segurança no Rio não é inédito. Em 1992, 20 mil homens das Forças Armadas ocuparam as ruas da capital do Estado para garantir a conferência ECO-92. Nos 25 anos seguintes, ocorreram mais de 30 operações com militares. Várias renderam dividendos políticos. Em 2010, blindados da Marinha foram usados na ocupação das favelas do Complexo do Alemão. A ação aumentou ainda mais a popularidade de políticos como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Até mesmo a aprovação em relação à polícia aumentou nas áreas ocupadas.
Só que as operações parecem ter apenas um efeito passageiro. A longa ocupação do Complexo da Maré para garantir segurança na Copa do Mundo custou 600 milhões de reais entre 2014 e 2015 – o dobro do que a Prefeitura do Rio usou em programas sociais na área nos seis anos anteriores.
Após a saída dos militares, os índices de violência voltaram a subir. Várias denúncias de abusos cometidos por militares foram registradas. Os moradores guardam uma lembrança amarga do período: 75% da população do complexo avaliou a ocupação como regular, ruim ou péssima, segundo a ONG Redes da Maré.
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