"Intocáveis" e a utopia de uma sociedade solidária
17 de março de 2013Mesmo após o cansativo voo do Marrocos para a Alemanha, Philippe Pozzo di Borgo parece incrivelmente alegre. A vida, diz, segue "boa como sempre". Mas quem leu o seu livro O Segundo Suspiro sabe que temperaturas abaixo de zero, como as registradas atualmente em Colônia, são um inferno para os tetraplégicos. Ele chega para a entrevista empurrado pelo argelino Abdel Sellou. Ambos estão na cidade para o festival de literatura lit.Cologne.
Ao longo de dez anos, Philippe e Abdel foram inseparáveis. E a ternura dessa relação, mostrada ao mundo pelo filme Intocáveis (2011), é notada com facilidade pelos gestos do enfermeiro, como quando ele, cuidadosamente, prepara um canudo para dar de beber a Philippe.
Numa prisão de luxo
Aos 61 anos, o francês Philippe Pozzo di Borgo não faz segredo de seu passado aristocrático. Em sua autobiografia, lançada na França em 2001, ele conta em detalhes sobre sua origem. Vindo de família nobre e tradicional, Philippe diz que "nasceu com uma colher de ouro na boca". Morou em castelos e, como chefe de um império de champanhe, viveu uma vida cheia de viagens e glamour. Até que, em 1993, sofreu um acidente de parapente.
Com 42 anos, ele começou uma segunda vida, preso a uma cadeira de rodas. Nunca precisou – e ainda não precisa – se preocupar com dinheiro. Mas isso é tudo que sua vida de hoje tem em comum com a de antes do acidente. Os últimos 18 anos foram um duro teste.
Em 1996, sua mulher, Béatrice, morreu de câncer. Um duro golpe, que levou Philippe a pensar na vida. "Nossa sociedade está em uma crise. As pessoas estão inseguras porque não sabem como será o futuro", divaga.
A crise financeira, afirma, agravou esse sentimento. Enquanto Philippe fala, é possível imaginar como ele gostaria de dar ênfase a suas palavras através dos gestos. Mas as mãos estão sempre imóveis nos braços da cadeira. Os olhos se mexem agitadamente, e ele olha para Abdel, sentado a seu lado. Suas mensagens são simples: "As pessoas precisam de afeto, caridade, elas tem que se preocupar mais umas como as outras".
Philippe não faz distinção entre deficientes e não deficientes. "Todos os seres humanos são interdependentes. As pessoas com deficiência podem desempenhar o papel de guardiões. Elas são lembradas da finitude da vida porque não são sempre bonitas, atléticas e imortais. Nós nos tornamos mais frágeis na medida em que envelhecemos", afirma.
Se você olhar de perto, diz Philippe, as pessoas com deficiências em nossa sociedade são na verdade a maioria. Para ele, essa é também a explicação para o sucesso do filme, que trata de pessoas invisíveis na sociedade, mas que dependem de ajuda. Ele sabe o quão importante é ajudar os outros: sem auxílio de outros, como Abdel, não poderia viver.
Situação vantajosa
Abdel Sellou, que é interpretado em Intocáveis pelo ator francês Omar Sy, também precisou de ajuda. Mas primeiro, ele fez uma carreira rasante: de ladrão a enfermeiro. Com vinte e poucos anos, vivia às margens da sociedade. Era um pequeno criminoso, recentemente saído da prisão, que vivia nos subúrbios de Paris. Philippe ajudou o jovem a se tornar uma pessoa melhor. "Antes, tudo girava em torno de mim, era um lobo solitário: cruel, egoísta e inescrupuloso. Eu era 'normal'", conta. A amizade com Philippe mudou tudo, disse Sellou, num momento excepcional de seriedade.
Abdel faz, muitas vezes, piada com sua vida. "Em casas como a de Philippe, você não entra pela porta, mas pela janela" ou "até hoje, nunca tinha visto um pastor que deixa um lobo dentro do seu estábulo". O argelino diz que nunca esperou conseguir o emprego. O francês rebate: "Se tivesse pedido para Abdul me matar, ele teria feito isso". O humor negro, também presente no filme onde François Cluzet interpreta o tetraplégico, foi na vida real uma espécie de estratégia de sobrevivência para os dois.
Séria preocupação
Desde o lançamento, em 2011, mais de 55 milhões de pessoas, em 60 países, assistiram à adaptação para o cinema da comovente amizade. Para a surpresa de todos, Intocáveis se tornou o maior sucesso do cinema francês de todos os tempos. Abdel não vive mais nos subúrbios de Paris – tornou-se empresário e cria galinhas na Argélia. Ele também escreveu um livro."Recebo cartas maravilhosas de agradecimento. Para alguém que nunca tinha lido um livro, Você Mudou a Minha Vida é uma longa carta de agradecimento de 250 páginas", disse.
Philippe Pozzo di Borgo também escreveu Tous intouchables?, um manifesto para uma sociedade mais solidária. Ele está comprometido com seus companheiros de sofrimento. Com o lucros do filme e das vendas de DVDs, ele apoia a associação Simon de Cyrène, que busca uma maneira mais humana, testando novas formas de convivência, onde as pessoas com deficiência e quem cuida delas vivem sob o mesmo teto.
Literatura para todos
Philippe sempre enfatiza que não é uma pessoa triste. Para ele, felicidade tem outra definição, onde o sucesso profissional e a carreira não desempenham papel algum. "Eu também ajudo, escutando a quem me ajuda, eles também têm suas dores e sofrimentos."
Philippe deixou Paris e hoje vive no Marrocos com a segunda esposa. Ele recebe centenas de cartas de pessoas pedindo conselhos e se tornou um símbolo de força e determinação. Todas as mensagens são respondidas. A lit.Cologne mostra como um evento literário também pode contribuir: intérpretes traduziam a discussão e a leitura para deficientes auditivos, e a primeira fila do evento era reservada a cadeirantes.
Os livros de Philippe Pozzo di Borgo também ganharam novas versões, resumidas com linguagem simplificada, para pessoas com dificuldade de compreensão. Ainda existem poucas ofertas para essa parcela da população. O comprometimento de Philippe é impressionante. Quando indagado de onde tira tanta energia, ele responde: "A fraqueza não é uma deficiência, mas um tesouro que o outros ainda têm que descobrir."
Autor: Sabine Oelze (mas)
Edição: Rafael Plaisant Roldão