Juristas temem que lei antiterrorismo seja usada para coibir protestos
14 de fevereiro de 2014O Senado deve votar em duas semanas a aprovação do projeto de lei que tipifica o crime de terrorismo no Brasil. A proposta, que começou a ser discutida por uma comissão mista do Congresso em maio do ano passado e tramita no Senado desde novembro, é genérica e pode servir como instrumento para coibir manifestações de rua, de acordo com estudiosos ouvidos pela DW Brasil.
O texto prevê pena de 15 a 30 anos de prisão em regime fechado a quem "provocar ou infundir terror ou pânico generalizado" que represente "ofensa" à vida, à integridade física, à saúde e à "privação de liberdade de pessoa". Em caso de morte, a pena é de 24 a 30 anos de reclusão, mais alta que a prevista para o crime de homicídio.
"Não só abre margem para a criminalização dos movimentos sociais e das manifestações como também é politicamente voltado para isso. Não é por acaso que essa questão está sendo discutida agora no Senado", afirma Bruno Shimizu, defensor público do Estado de São Paulo.
A matéria foi aprovada por unanimidade na comissão mista do Congresso criada para consolidar a legislação federal. Depois de votado no plenário do Senado, o projeto seguirá para análise na Câmara dos Deputados. Especialistas em Direito Penal e Direito Internacional avaliam que, com a redação atual, a lei pode resultar em arbitrariedades.
"Da forma como está, faltam critérios específicos para a definição do que é terrorismo. Boa parte da legislação internacional define quais atos seriam terroristas, mas não tipifica o crime, justamente pela dificuldade em se estabelecer critérios objetivos para a caracterização do ato", explica o advogado e diretor do Centro de Direito Internacional, Délber Andrade Lage.
A ausência do tipo penal terrorismo é uma lacuna na legislação brasileira desde a promulgação da Constituição de 1988. O texto constitucional diz apenas que atos terroristas configuram crime hediondo e inafiançável. "A Constituição cobra uma regulamentação. Esse é um projeto duro para que não haja leniência com esse tipo de atitude", disse à DW o senador Romero Jucá (PMDB-RR), relator da proposta.
Para o senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), a legislação brasileira já dispõe de todos os dispositivos legais para combater crimes dessa natureza. "Essa lei é desnecessária. Com esse texto, qualquer estouro de balão ou qualquer reunião de jovens que cause pânico poderão ser enquadrados como terrorismo", diz.
Após a morte do cinegrafista Santiago Ilídio Andrade, atingido por um rojão disparado por um manifestante na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, o senador Jorge Viana (PT-AC) defendeu em plenário a rápida aprovação do projeto para que o "banditismo" nos protestos e a ação de manifestantes violentos sejam combatidos.
Urgência proposital
Jucá, porém, argumenta que os protestos nas ruas não poderão ser enquadrados no crime de terrorismo. "A manifestação pacífica é legítima, e o que for quebra-quebra se enquadra no crime de vandalismo. O terrorismo é para situações que ainda não são vistas no país, como a bomba na Maratona de Boston e o ataque às torres gêmeas, por exemplo."
O parlamentar concorda que o texto tem um "toque de generalidade", mas avalia que caberá ao Judiciário interpretar o tipo penal da melhor forma. "Não há como ser muito específico nesse caso. Se um delegado ou promotor, por exemplo, enquadrar alguém em crime de terrorismo, há a Justiça para discutir essa questão e, se for o caso, desenquadrar. É uma tipificação para começar a discutir o crime", afirma.
O advogado Maurício Zanóide de Moraes, professor de processo penal da USP, avalia que este não é o melhor momento para debater a questão. Para ele, o calor político gerado pelos protestos pode perturbar a discussão técnica e apurada que se deve ter sobre a tipificação do terrorismo.
"Com termos tão genéricos, vai se gerar muito mais um controle ideológico e social do que efetivamente uma boa regulamentação penal. Não se deve discutir mudanças legais tão significativas no calor de acontecimentos de rua", argumenta. "Desde 1988 precisamos definir e conceituar o que é terrorismo e só agora se decide fazer isso?"
Lei protege estádios
O artigo quarto do projeto de lei de autoria de Jucá trata do terrorismo "contra a coisa", que consiste em "provocar ou infundir terror ou pânico generalizado" por meio de um dano a um bem ou serviço essencial. Entre os locais listados pelo texto, "estádio esportivo" é considerado um bem essencial, assim como hospitais e sedes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
"O artigo não fala em praça pública, mas fala em estádio. Desde quando uma arena esportiva pode ser considerada um bem essencial, assim como o é, por exemplo, uma sede da federação?", questiona Zanóide de Moraes. "Se isso não é uma indicação de que há interesse político e que o momento é impróprio para a discussão de uma lei tão importante, eu não saberia dar um exemplo mais claro."
O projeto que tipifica o terrorismo também revoga o único artigo que trata do assunto e que está presente na Lei de Segurança Nacional. Segundo o texto promulgado em 1935 e ainda em vigor, a pena para quem praticar algum atentado por "inconformismo político" é de três a dez anos de prisão, menor que a proposta pelo Senado.
"Os manifestantes que vão para as ruas demandar a solidificação do Estado de Direito vão acabar sendo tachados como terroristas com uma pena ainda maior que a estabelecida na ditadura", avalia Shimizu. "É um rótulo fácil de imprimir com um tipo penal que não define absolutamente nada."