Lideranças da Amazônia denunciam crimes em nome do ouro
10 de maio de 2022Maria Leusa Munduruku nunca pensou que precisaria ir tão longe para ajudar o seu povo. Na Suíça, diante de representantes de refinarias que recebem ouro extraído da Amazônia, ela relata como o consumo do metal precioso tem influência destrutiva no território onde vivem os munduruku, no Pará.
"Eles perguntaram para a gente o que podem fazer para ajudar. A gente pede que eles parem de comprar o ouro e que consultem os povos indígenas. Os países europeus que compram, que apoiam esse comércio com sangue indígena, são culpados também", diz Maria por telefone à DW Brasil após a reunião na Suíça, na última sexta-feira (06/05).
Vitória, de 5 anos, acompanha a mãe. A criança é uma das testemunhas do ataque que a aldeia onde vivia com a família sofreu, há um ano, quando garimpeiros atearam fogo na tentativa de intimidar quem se opõe à atividade ilegal dentro da Terra Indígena (TI) Munduruku.
"Eles queimaram nossas casas, atiraram pedras em nossos filhos. A vida dos nossos filhos está no meio dessa violência", relembra Maria Leusa, que preside a Associação de Mulheres Indígenas Munduruku Wakoborũn, cuja sede também foi atacada.
Só em 2019 e 2020, garimpos ilegais levaram ao desmatamento de pelo menos 1.925 hectares na TI Munduruku, apontou um estudo recente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Irregularidades estão por toda a cadeia: segundo os pesquisadores, quase 49 toneladas de ouro brasileiro vendidas no período são ilegais, o que corresponde a 28% do total produzido. Um levantamento feito pelo Instituto Escolhas neste ano encontrou um dado ainda mais preocupante: metade do ouro comercializado entre 2015 e 2020 têm indício de ilegalidade (229 toneladas).
Além das denúncias feitas a autoridades no país, lideranças indígenas e comunitárias buscam mais atenção internacional. Ao longo de uma semana, uma comitiva se encontrou com parlamentares da União Europeia e representantes da indústria na tentativa de obter apoio.
"Estamos denunciando a participação deles em projetos que destroem nossos territórios e a vida de muita gente, que deixam um lastro muito grande de problemas sociais e ambientais. Nós estamos dizendo para eles que são responsáveis também pelo o que está acontecendo no nosso território", resume Ana Laide Soares Barbosa, do Movimento Xingu Vivo para Sempre.
Batalha judicial pelo ouro
Entre os compromissos na Suíça, uma reunião com a Konwave Gold Equity Fonds era aguardada. Em cima da hora, no entanto, a reunião foi cancelada sem explicação, segundo a comitiva.
O fundo é um dos investidores da mineradora canadense Belo Sun, que tenta há anos iniciar na região da Volta Grande do Xingu, no Pará, a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil. Com capacidade de produção anual estimada em 5,8 toneladas, o empreendimento teria uma barragem de rejeitos de 35 milhões de metros cúbicos – mais que o dobro da capacidade da estrutura que rompeu em Brumadinho, em Minas Gerais, na tragédia de 2019.
O projeto, que, segundo ações do Ministério Público Federal (MPF), acumula diversas violações de direitos humanos e ambientais, é alvo de uma batalha judicial há quase uma década. Em seu último episódio, em 25 de abril deste ano, a mineradora sofreu mais uma derrota: o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) manteve suspenso o licenciamento ambiental.
Na prática, essa decisão repete outra tomada em 2017 pelo próprio tribunal, que anulou a licença de instalação concedia à Belo Sun pelo governo estadual do Pará. Para o desembargador que analisa o caso, os impactos que o empreendimento teria sobre as comunidades de pescadores, ribeirinhas, indígenas e assentados da reforma agrária na Volta Grande do Xingu precisam ser estudados a fundo.
Desde a mais recente decisão, as ações da empresa na bolsa de valores de Toronto despencaram mais de 50%.
"A ausência de consulta e consentimento prévio, livre e informado no que tange às comunidades afetadas é uma das ilegalidades da mina da Belo Sun. A legislação é clara nesse sentido, a Convenção 169 se aplica aos povos indígenas e às demais comunidades tradicionais", afirma Eloy Terena, advogado da Articulação dos Povos indígenas do Brasil (Apib), sobre as ilegalidades cometidas pela mineradora canadense.
Violência e contrato irregular
Para quem vive e se opõe à mineração na região, o risco é grande. "Muitas famílias são ameaçadas e intimidadas. Neste momento, as ameaças contra uma família em específico, que denuncia todas as irregularidades, aumentaram muito. Uma pessoa da família teve que sair às pressas pra não ser morta e não pode voltar pra casa", detalha Ana Laide Soares Barbosa, reforçando que o nome da vítima não pode ser mencionado publicamente para sua proteção.
Um dossiê feito por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) revela sucessivas irregularidades na aquisição de terras pela Belo Sun no Projeto de Assentamento Ressaca, onde a empresa quer instalar sua mina de ouro. Segundo o documento, a mineradora comprou lotes destinados ao assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sob a alegação de que não haveria mais moradores no local. Os pesquisadores apontaram, no entanto, que assentados ocupavam as áreas.
O contrato de concessão de uso firmado entre a mineradora e o Incra em novembro de 2021 e homologado pelo Conselho Diretor do órgão fundiário em janeiro de 2022 "teve o propósito de liberar terras de interesse estratégico para a extração intensiva de ouro em quatro blocos de áreas incidentes no PA Ressaca e incrustadas no Cinturão Verde Três Palmeiras", afirma o dossiê.
Uma ação civil pública protocolada pela Defensoria Pública da União há poucos dias agora pede a anulação do contrato.
"Todas as tratativas mostram que as negociações do contrato foram muito problemáticas e irregulares. Sabemos que a Belo Sun precisa desse contrato e, em última análise, do acesso às terras públicas, para construir sua mina de ouro. E vai fazer de tudo para consegui-lo", analisa Ana Carolina Alfinito, assessora jurídica da Amazon Watch.
Procurada, a Belo Sun não respondeu as perguntas enviadas pela DW que questionam as irregularidades do contrato com o Incra, mas enviou o link de um blog da empresa com um informações divulgadas à época da assinatura do acordo.
Belo Sun e Belo Monte
Para Barbosa, o funcionamento da mina da Belo Sun decretaria a morte da Volta Grande do Xingu, região paraense onde o rio faz uma grande curva. A mina ficaria a poucos quilômetros da hidrelétrica de Belo Monte, operada pela Norte Energia desde 2016, e motivo de diversos processos movidos pelo Ministério Público Federal (MPF) por não cumprimento das condições impostas à sua construção.
Com autorização para desviar até 80% da água desse trecho do rio, Belo Monte provocou uma redução drástica de volume na Volta Grande, com redução de peixes disponíveis e de água para cultivar a terra, afpontam documentos protocolados pelo MPF.
"É nesse contexto que Belo Sun quer minerar. Seria o ecocídio da Volta Grande", diz Barbosa, do Movimento Xingu Vivo para Sempre.
Nas conversas durante a viagem à Europa, Maria Lena Munduruku também pediu que as empresas se manifestem publicamente contra o Projeto de Lei (PL) 191, que quer liberar mineração e outros empreendimentos em terras indígenas. A discussão sobre o PL no Congresso, segundo ela, já incentiva o aumento das invasões de garimpeiros nos territórios.
"A gente culpa o Estado por isso. Eles apoiam esses crimes que estão sendo cometidos no nosso território", diz Maria Lena sobre o governo do presidente Jair Bolsonaro.
"Ouro não se come. O que a gente come são peixes, frutas, vivemos do rio, das florestas. Nossos filhos estão doentes pelo mercúrio, e as mulheres são as mais atingidas. A gente quer viver em paz", afirma.