"E eu não sou uma mulher?"
"Ninguém nasce mulher, torna-se mulher."
Noventa e oito anos separam essas duas frases. A primeira é de Sojourner Truth, uma mulher negra, nascida na escravidão, mas que conseguiu lutar pela sua liberdade e transformou-se numa das mais importantes defensoras do abolicionismo e do feminismo nos Estados Unidos. A segunda frase – que para alguns setores feministas é quase uma palavra de ordem – foi escrita por uma mulher branca, a filósofa e feminista francesa Simone de Beauvoir. A primeira frase foi proferida de improviso na Convenção das Mulheres em 1851, e a segunda, publicada no livro O Segundo Sexo em 1949.
No entanto, não são apenas quase 100 anos que separam essas duas frases. As experiências vividas por essas mulheres foram radicalmente distintas e atravessadas por suas pertenças raciais, pelos lugares socioeconômicos que elas ocupavam e, por que não dizer, pela possibilidade de suas ideias serem ouvidas e amplificadas. São frases de duas feministas, mas que revelam o quão plural, diferente e desigual é esse "ser mulher".
O interessante é que tanto o que essas mulheres defendem como a diferença entre elas permanecem latentes nos dias de hoje. Em pleno ano de 2021, ainda faz sentido que mulheres, principalmente mulheres negras e não brancas, exijam ser reconhecidas nesse lugar do feminino e do feminismo. Ao mesmo tempo, para outras mulheres, grande parte delas brancas, o feminino e o feminismo continuam sendo espaços de construção e reconstrução permanente de suas identidades.
Por isso, para além de flores e frases de efeito, março segue sendo um mês para celebrar e rememorar a luta das mulheres, naquilo que elas têm em comum, mas também nas diversidades que constituem nossas existências. Ainda é preciso comemorar o direito ao voto, a ampliação do mercado de trabalho, a independência financeira, a maior participação na esfera política, a Lei Maria da Penha, a PEC das domésticas, os casamentos hetero e homoafetivos, o divórcio. E, a partir dessas comemorações, encontrar forças para continuarmos perguntando "Quem mandou matar Marielle Franco?”; para lutarmos pela possibilidade de escolher quando e se queremos ter filhos; para reivindicarmos uma licença maternidade adequada às necessidades de um bebê e de uma mãe que nascem; para exigirmos equiparação salarial, para dissociarmos trabalho doméstico à figura exclusiva das mulheres; para fazermos com que o feminismo possa, realmente, chegar às áreas de serviço e aos quartos de empregada das casas de classe média do país e transformar o que precisa ser transformado. E, acima de tudo, para que possamos continuar vivas.
É assustador pensar que, em última instância, o que une a diversidade das experiências femininas no Brasil é a luta pela vida.
Mais uma das verdades descortinadas em tempos pandêmicos é a violência constante e crescente contra as mulheres. Violências essas que também são atravessadas pelas questões de raça, gênero e pela posição social. Violências que naturalizaram mulheres criando seus filhos sozinhas, mulheres trabalhando em dupla ou tripla jornada, mulheres abandonando seus empregos em tempos de pandemia para "manterem a casa funcionando", mulheres sendo estupradas, mulheres tendo seus filhos assassinados, mulheres sendo assassinadas – essa última, uma prática já tão institucionalizada, que tem nome próprio: feminicídio.
Nessa crise que nos assola e revela os aspectos mais cruéis da sociedade de que fazemos parte, miro o exemplo das mulheres. Por aqui, são elas que continuam carregando esse país no braço e no ventre. Porque, estar viva ainda é uma vitória, e não um ponto de partida. E, mais do que nunca, a vida vem sendo tutelada pelas mulheres, sejam aquelas que garantem o alimento em casa, aquelas que estão na linha de frente dos hospitais na luta contra a covid, ou ainda as mulheres que pesquisam sobre esse vírus, apontando quais são as diretrizes mais seguras a serem tomadas em meio a uma pandemia. Ou seja: mesmo em meio às profundas diferenças e desigualdades que constituem o "ser mulher", há pontos de encontro. Se houver uma compreensão profunda das diferenças e uma luta real pelo fim das desigualdades, seremos capazes de transformações profundas.
Então, para sobreviver à essa estrutura que faz do feminismo um inimigo ao invés de um aliado, procuro histórias de mulheres (de ontem e de hoje), na esperança de que, um dia, as frases de Soujorney Truth e Simone de Beauvoir possam andar de mãos dadas.
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Mestre e Doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.