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Não é mentira: nossa ditadura militar também foi racista

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
1 de abril de 2024

Ao mesmo tempo em que propagava o mito da democracia racial, regime militar enquadrava como crime de segurança nacional as ações que evidenciavam ou denunciavam o racismo contra a população negra.

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Policiais fardados conduzem homem negro na ditadura
Movimentos que enaltecessem a negritude eram acompanhados de perto pelo serviço de espionagem da ditaduraFoto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Em meio às comemorações da primeira e mais longeva Constituição brasileira, promulgada em 25 de março de 1824 – um documento que demonstra a pactuação pela escravidão –, é no mínimo perturbador atestar que a primeira Constituição do país que tipifica o preconceito racial como crime foi elaborada em 1967, em plena ditadura militar.

Os desavisados e/ou conservadores saudosistas de um regime violento e antidemocrático diriam: "está vendo, a ditadura não foi nada disso que esses esquerdistas comunistas ficam dizendo." E esse seria mais um enorme e redondo erro daqueles que defendem a ditadura militar. Porque no Brasil não vale só o escrito, mas também o que se cala.

Se olharmos com cuidado o parágrafo 1º do artigo 150, veremos que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido por lei."

À primeira vista, esse parágrafo parece ser contrário a muito do que se entendeu como sendo a ditadura militar. Mas não é.

Talvez um dos períodos mais simbólicos da pactuação entre as elites e o governo brasileiro em nome do mito da democracia racial tenha se dado na ditadura, de 1964 a 1985. Durante esses 21 anos, ficou acordado que o Brasil era um país no qual não havia racismo, pelo menos não da forma como se via nos Estados Unidos – que no mesmo período vivia um dos movimentos sociais mais importantes de sua história, o Civil Rights Movement – ou na África do Sul, dois países conhecidos por sua legislação segregacionista. O máximo que poderia acontecer por aqui seriam atitudes racistas que, conforme constava na Constituição de 1967, deveriam ser punidas pela letra da lei.

Acontece que, ao apostar numa ideia mentirosa de democracia racial, aqueles que estiveram no comendo do país durante a ditadura militar fizeram uma inversão absolutamente perversa, que se expressava no parágrafo 8º do mesmo artigo 150, que definia que não seria "tolerado a propaganda de guerra, de subversão da ordem, ou de preconceito de raça ou de classe."

Numa jogada de mestre, a ditadura militar brasileira conseguiu transformar todas as ações que evidenciavam ou denunciavam o racismo contra a população negra num crime de segurança nacional. A equação era relativamente simples: já que o Brasil era um país sem racismo, aqueles que dissessem o contrário estariam insuflando as massas, agindo contra a segurança e a ordem nacional e deveriam responder por isso. E sabemos bem como esse governo agiu para manter a ordem da ditadura que eles instauraram.

Movimento negro no alvo da repressão

Essa inversão acabou criminalizando uma série de lutas, movimentos e personagens que defendiam uma pauta antirracista. Não foi por acaso que Abdias do Nascimento, um dos mais importantes intelectuais, militantes e políticos brasileiros, passou a maior parte da ditadura militar em autoexílio nos Estados Unidos.

Também foi por isso que movimentos culturais que enaltecessem a negritude, como os bailes black do Rio de Janeiro, foram acompanhados de perto pelo serviço de espionagem do governo. Tais espiões acompanhavam esses bailes e uma profusão de movimentos negros de todo país –que afirmavam que "o negro é lindo" e denunciavam o nosso racismo.

Para ter certeza de que a população negra estava sob controle, as blitzs foram criadas, reeditando a violência com a qual as forças policiais brasileiras tratavam as pessoas negras. O preto continuava sendo um criminoso em potencial, e qualquer pessoa negra que fosse pega sem documento de identidade seria detido. Três detenções levavam à prisão. Era simples assim.

Violência física e psicológica, suspeição generalizada, inversão da lógica racista para a manutenção do próprio racismo. Mesmo que tenhamos prestado pouca atenção, essas foram práticas e dinâmicas que constituíram o regime militar brasileiro.

Neste ano de 2024, a ditadura militar completa 60 anos. E ainda precisamos dizer das mais diferentes formas que sim, tivemos um regime que suspendeu os direitos políticos e civis dos brasileiros, que respondia com violência e tortura às contestações políticas contrárias a ele, e que fez a liberdade de expressão ser letra morta.

É preciso continuar contando as histórias da ditadura militar. É preciso continuar estudando e ensinando sobre a ditadura militar, para evitar que ela possa retornar ao nosso horizonte, como possibilidade de futuro. É preciso rememorar, nunca esquecer, para que não haja repetições.

Mas é preciso que esse movimento não esqueça que a manutenção do racismo também foi uma mola propulsora dessa ditadura. Que a denúncia do racismo era entendida como tentativa de sublevação à ordem, que pessoas negras eram violentamente abordadas e presas apenas por serem pessoas negras.

Nunca foi mentira: a ditadura militar existiu, e ela também foi racista.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.