Número de indígenas eleitos cresce 28%
25 de novembro de 2020A eleição de 2020 trouxe boas notícias para os povos indígenas do Brasil, que vinham enfrentando uma série de revezes sob o governo Jair Bolsonaro. Foram eleitos 237 representantes de povos originários para os cargos de vereador, vice-prefeito e prefeito, 28% a mais do que na eleição municipal anterior.
O percentual de indígenas vitoriosos sobre o universo total de pessoas eleitas também cresceu. Neste ano, os indígenas foram 0,34% de todos os eleitos, contra os 0,26% de há quatro anos. A cifra é pequena, mas também é baixo o percentual de pessoas que se declaram indígenas: 0,47% da população brasileira, segundo o último Censo, de 2010.
E houve alta na representatividade das mulheres indígenas. Em 2016, foram eleitas 15 mulheres de povos originários no Brasil, 8% de todos os indígenas eleitos naquele ano. Em 2020, foram 41 mulheres eleitas, que representam 17% de todos os indígenas que terão cargos eletivos municipais a partir de janeiro.
A expansão também ocorreu no número de candidatos indígenas de ambos os gêneros: havia o nome de 2.216 deles nas urnas neste ano, alta de 29% em relação ao último pleito municipal. Os dados, preliminares, foram compilados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e pelo Instituto Socioambiental.
Por trás desses números, estão algumas histórias de impacto, como a de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, cidade com o maior percentual de indígenas no país. O prefeito e a vice-prefeita eleitos neste ano são indígenas, assim como dez dos 13 vereadores.
Em Uiramutã, em Roraima, o prefeito, o vice-prefeito e seis dos nove vereadores eleitos são indígenas. O resultado tem um significado especial no município, criado em 1995 pelo governo roraimense justamente para atrapalhar o exercício de direitos dos povos indígenas locais, diz o antropólogo Stephen Baines, professor da Universidade de Brasília (UnB).
Ele conta que Uiramutã foi desmembrada naquele ano de outro município maior, Normandia, com o objetivo de dividir a terra indígena Raposa Serra do Sol entre vários municípios e dificultar o processo de homologação, que confirmaria o direito dos povos sobre o seu território.
Mesmo assim, a terra indígena Raposa Serra do Sol foi homologada em 2005, com decisão mantida em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal após questionamento do governo de Roraima.
"Os indígenas não conseguiram impedir que o município fosse criado, mas preparam pessoas para se candidatarem e agora controlam a prefeitura e, pela primeira vez, a Câmara da cidade", diz Baines.
Organização e reação
De acordo com os pesquisadores ouvidos pela DW, o aumento do espaço ocupado por indígenas em cargos municipais é resultado do maior acesso à educação formal para esses povos, da consciência de que eles precisam disputar essas posições para reagir a ameaças às suas terras e de um crescente pragmatismo sobre como fazer política e a quais partidos se filiar.
Baines destaca a presença de indígenas no sistema educacional, facilitada por projetos que permitiram a eles cursar o ensino médio em suas próprias comunidades, e seu crescente ingresso no ensino superior. Em 2010, 2.723 novos alunos indígenas se matricularam em faculdades. Em 2017, dado mais recente disponível, foram 25.670.
Outro fator, diz, seria uma reação a “ataques" dirigidos aos povos indígenas pela bancada ruralista, que segundo ele teriam começado no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, com a diminuição no ritmo de demarcações, avançado pela gestão de Michel Temer e se agravado "radicalmente" com a eleição de Bolsonaro.
"Há um crescente interesse dos indígenas em ocupar cargos políticos, que os veem como uma das maneiras de enfrentar as violações de seus direitos", afirma o professor da UnB.
A participação deve continuar a se expandir nos próximos anos, devido ao refinamento das estratégias eleitorais adotadas pelos indígenas, diz o antropólogo Luís Roberto de Paula, professor da Universidade Federal do ABC, que pesquisa desde 1995 a atuação de indígenas em eleições municipais.
"Esse fenômeno caminha junto com a reorganização do movimento indígena e a fundação de suas associações. Leva-se tempo para dominar os códigos burocráticos dos 'brancos', que não são fáceis. As candidaturas no nível local são um fenômeno antigo, vêm desde os anos 1970. Mas a efetividade das campanhas, que era baixa, vem se intensificando a passos largos", afirma.
Ele aponta que muitos povos têm melhorado sua capacidade de analisar o contexto político municipal, como as forças locais se posicionam, a chance de cada partido superar o coeficiente eleitoral e qual a melhor estratégia no lançamento de candidaturas.
De Paula cita o exemplo do povo Potiguara, no município de Marcação, na Paraíba, como um dos que acumularam mais experiência em participar de eleições municipais. Neste ano, eles lançaram 27 candidatos e elegeram o prefeito e oito dos noves vereadores da cidade, taxa de sucesso de 33%.
Em contrapartida, alguns povos ainda fragmentam seu votos em mais candidaturas do que o ideal, reduzindo a votação individual de todos e a efetividade das campanhas. Como em Japorã, no Mato Grosso, onde o povo Guarani elegeu apenas um dos seus 41 candidatos.
Preferência partidária
A escolha da legenda pelos indígenas envolve não somente a preferência partidária e identidade com o programa, mas o cálculo de qual partido oferece a melhor estrutura local e chances de vitória.
Tradicionalmente, o PT é o partido preferido dos candidatos indígenas. Da década de 1970 até as eleições de 2016, o PT somou 104 mandatos eletivos desses povos, seguido pelo PMDB, com 75, segundo levantamento feito por De Paula.
Neste ano, pela primeira vez, o PMDB superou o PT em mandatos municipais conquistados por indígenas, com 27 vitórias, duas a mais que o PT. Em seguida, estão PSD, com 21, PP, com 20, e DEM e Republicanos, empatados com 16 cada um.
"O PT tem tradição de apoio a esses movimentos, capilaridade, estrutura partidária e simpatia ideológica de muitos indígenas. Mas as candidaturas dos indígenas acompanham o movimento geral da política partidária no país, e neste ano houve uma inflexão para a direita. O DEM, que em 2016 teve cinco eleitos, neste ano teve 16", diz.
O pragmatismo eleitoral tem mais peso nas disputas locais, onde o que importa é o voto da própria comunidade e o atendimento a demandas práticas, como consertar uma ponte quebrada dentro da terra indígena ou melhorar o atendimento de saúde.
"O indígena pode até ter simpatia pela Rede, que tem um interesse evidente na causa, mas aí o partido não tem nem um diretório municipal na cidade. Ele faz uma análise estratégica local", diz.
Nas candidaturas a deputado estadual ou federal, o cenário é diferente. Para se eleger, o indígena precisa ampliar sua votação e atrair também o apoio dos não indígenas. Nesse caso, a estratégia é deslocar a pauta para questões nacionais e globais, como demarcações, preservação do meio ambiente e mudanças climáticas.
Foi o caso da campanha vitoriosa de Joenia Wapichana , eleita em 2018 a primeira mulher indígena para a Câmara dos Deputados, pela Rede de Roraima. Ou da escolha de Sonia Guajajara , no mesmo ano, para ser vice da chapa à Presidência da República liderada por Guilherme Boulos, do Psol.
Avanço feminino
Dentro da expansão da representação indígena, ocorre também um processo de conquista de poder pelas mulheres, resultado da maior escolaridade e de um processo de transformações nas comunidades locais.
"As mulheres têm ocupado cada vez mais um espaço que tradicionalmente era dos homens indígenas. Isso aparece nas aldeias, nas associações, no aumento do número de cacicas", diz De Paula.
Uma delas é Marlene Kaxinawá, 50 anos, eleita pelo DEM a primeira mulher indígena vereadora de Santa Rosa do Purus, no Acre. Ela diz que sua candidatura foi resultado de um longo processo de conversa e articulação com o seu povo, os Hunikuin, até que eles decidissem lançar uma mulher à Câmara Municipal da cidade.
"Era muito difícil para uma mulher indígena ser eleita. Tivemos que estudar e fazer vários encontros para ocupar esse espaço", diz. Kaxinawá afirma que era comum ouvir dos homens que as mulheres indígenas eram tímidas demais para um cargo eletivo.
"Muitas não tinham coragem, não tinham o empoderamento, o conhecimento. Mas fomos entendendo que as mulheres tinham que ocupar essa cadeira sim", diz.
Em uma reunião com membros de seu povo, em fevereiro deste ano, os próprios homens chegaram à conclusão que era hora de fazer uma mulher vereadora, uma "mulher guerreira".
"Aí eu mostrei a minha força, e consegui. E aqui estou", diz Kaxinawá. Sua prioridade será atuar na saúde e na educação dos Hunikuin, e trabalhar para conscientizar novas mulheres indígenas a se candidatarem no futuro.
A Câmara Municipal de Santa Rosa do Purus tem nove cadeiras, das quais cinco serão ocupadas por indígenas a partir de 2021.
Evolução histórica
Conforme o mapeamento dos pesquisadores, a participação dos indígenas nos processos eleitorais começa em 1976, quando sete candidatos a vereador se lançaram no país e um foi eleito para a Câmara de Mangueirinha, no Paraná, o cacique Ângelo Kretã.
Em 1982, Mario Jurua foi eleito o primeiro indígena deputado federal, pelo PDT, em uma articulação liderada pelo antropólogo Darcy Ribeiro e apoiada por Leonel Brizola. Apesar de ter nascido em um município de Mato Grosso, Jurua foi lançado pelo estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de ampliar a votação e obter o apoio de não-indígenas que apoiavam a causa.
Um dos primeiros prefeitos indígenas foi João Neves, do povo Galibi-Marworno, eleito em 1996 em Oiapoque, no Amapá. Em 2014, o Tribunal Superior Eleitoral começou a incluir o registro de cor e raça nas candidaturas, o que facilitou a análise da participação dos povos indígenas nas eleições.
Em 2018, Wapichana foi eleita a primeira mulher indígena deputada federal, e Guajajara foi a primeira mulher indígena candidata a vice-presidente.