"Nas ciências o bom Deus fica de fora"
2 de dezembro de 2005DW-WORLD: Professor Prinz, costuma-se citar uma frase sua: "Não fazemos o que queremos, nós queremos o que fazemos". Confere?
Wolfgang Prinz: Esta frase é um resumo espirituoso da interpretação dos experimentos do neurofisiólogo norte-americano Benjamin Libet. Estes parecem mostrar que primeiro um movimento é iniciado no cérebro – por exemplo, levantar o dedo – e em algum momento mais tarde a pessoa tem a impressão de que efetivamente quer realizar o movimento.
No entanto, as decisões voluntárias ocorrem de forma diversa aos reflexos, ações instintivas ou coisas triviais como levantar um dedo. Na grande maioria das situações do dia-a-dia, primeiro refletimos detidamente, para depois agir.
Então podemos continuar partindo do princípio de que não nos reduzimos a apenas reagir, mas sim que há motivos, razão, discernimento, ação planejada?
Tais coisas existem, porém o seu papel não está totalmente claro. Aquilo que percebemos – ou seja, nossas intenções – não é automaticamente a causa real de nossas ações. Pode ser que nos iludamos, e que o percebido não tenha exatamente as funções que lhe atribuímos. Pois nossa percepção não passa de uma imagem seletiva da realidade.
Também o que sabemos sobre nossa vida interna é altamente seletivo. Está sujeito a ilusões e pode ser tão falso quanto o que sabemos sobre o mundo. E não é a menor garantia de que os processos e mecanismos fundamentais funcionem realmente como dita nossa intuição.
Mas isso significa que cada um percebe o mundo de forma subjetiva. Como é possível comunicar-se com os outros, da forma que seja?
Enquanto a subjetividade das diferentes pessoas for organizada de forma semelhante, não é nenhum problema. E os mecanismos sociais cuidam para que seja assim. A subjetividade não nos é dada pela natureza, mas sim socialmente construída. Discursos e práticas sociais garantem uma equiparação da subjetividade nos indivíduos. Caso contrário, a comunicação deixaria de funcionar.
Há uma determinação social das ações, fazendo-nos reagir automaticamente a condições sociais básicas?
Sim, naturalmente! Nós, seres modernos, somos 99% circundados de artefatos sociais e técnicos. Só nos tornamos o que somos por convivermos com outros humanos. Eu gostaria de desenvolver uma teoria segundo a qual a subjetividade humana é, também ela, um artefato social.
E que o livre-arbítrio é também fabricado socialmente. Para nós ele parece, é claro, ser inato. Contudo não há a menor certeza de que aquilo que percebemos sobre nossa vida interior seja indicador do grau de liberdade dos processos fundamentais.
Se não somos livres, de onde vem a decisão de fazer ou deixar de fazer algo?
Penso que a decisão parte essencialmente do controle social. Mecanismos de interação social acarretam que gradualmente, ao longo de nossas vidas, nos entendamos como "agentes responsáveis", que assumem as conseqüências de seus atos.
Isto, por outro lado, nos leva a desenvolver práticas individuais, regulando nossas decisões e ações de forma a serem justificáveis diante das regras da sociedade. Somos educados para tal.
E, por ser assim, tornamo-nos indivíduos que refletem antes de fazer algo. O arbítrio é, portanto, uma instância moral, e não um "órgão da alma", provido pela natureza. A idéia do livre-arbítrio foi "inventada" na filosofia moral cristã de Agostinho e dos pais da Igreja. O livre-arbítrio foi inventado para explicar como é possível que as pessoas ajam de forma moral.
Mas isso significa que, em princípio, só haveria pessoas nobres, prestativas e boas. Contudo, esse não é o caso. Por quê?
As pessoas também têm outros motivos, além dos que são bons do ponto de vista moral. E nem sempre conseguem controlar da forma necessária suas necessidades e instintos considerados imorais. As sociedades sempre tiveram que tolerar um certo grau de criminalidade.
Além disso, os sistemas morais se modificam o tempo todo, tornando-se menos estáveis e menos eficientes. Isso não explica por que as coisas são como são, mas assim é o mundo.
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Ao que tudo indica, atualmente os neurologistas tentam reduzir todas as ações humanas a fenômenos físicos...
Tenho minhas dúvidas de que algum neurologista esteja pesquisando isso. Eles estudam as sinapses e as células, porém não como os atos humanos sejam regulados apenas por células e sinapses. Isso é coisa dos cadernos de cultura...
Mas naturalmente, também eu acredito que tudo o que os seres humanos pensam e fazem seja, afinal de contas, representado e realizado através de processos realizados nas sinapses e neurônios.
Porém, simplesmente examinar sinapses não revela nada sobre o funcionamento cerebral. Muito pelo contrário. Cérebros são órgãos encarregados de realizar determinadas tarefas no nível do comportamento e ação. E só por isso se transformaram em máquinas materiais, capazes de realmente desempenhar tais tarefas. Sem compreendê-las, não há como entender como o cérebro funciona.
Então, como podemos entender o funcionamento do cérebro?
Só procedendo de forma inversa. Deve-se partir das funções que o sistema realiza. Sou bastante a favor de continuar perseguindo o ponto de vista reducionista dos neurologistas. Porém isso não significa que os níveis descritivos mais complexos desapareçam.
Normalmente procede-se de cima para baixo, dando uma dianteira aos níveis explicativos e analíticos mais complexos, para que possam desenvolver suas hipóteses. Em seguida procura-se nos níveis analíticos mais elementares os processos possivelmente relevantes.
Por isso é tão difícil construir robôs que se comportem como os seres humanos?
Pode-se construir tais robôs, mas só para certas funções. Mas primeiro é preciso analisar a tarefa que cumprirão, elaborando a realização a partir daí. É muito complicado construir um robô capaz de se mover num ambiente complexo sem ficar encurralado a toda hora.
Fica em aberto se é possível construir máquinas de chips de silício, capazes de funções cognitivas semelhantes às dos sistemas naturais. Porém uma coisa é certa: os sistemas que todos nós temos em nossas cabeças são, pelo menos no momento, muitíssimo mais eficientes do que os sistemas não-biológicos.
Trata-se apenas de um problema científico ainda não resolvido, ou é também uma questão de fé, uma espécie de confiança num princípio extraterreno, que nos torna únicos?
Simplesmente ainda sabemos muito pouco sobre como o cérebro realiza as funções mentais, e se desempenhos cognitvos desse grau de complexidade só são realmente possíveis em sistemas biológicos, os únicos em que foram observados até agora.
Há motivos para crer que os sistemas biológicos possuem características que lhes permitem realizar tarefas de computação enormes num espaço mínimo. O que talvez envolva certos design principles que ainda não compreendemos.
Mas isso continua não sendo motivo para apelar para o bom Deus. Os cientistas sempre deixam Deus de fora. Alguns deles podem ser crentes na vida privada, porém o bom Deus nunca aparece nas ciências como um agente.
O professor Wolfgang Prinz dirige desde 1990 o Departamento de Psicologia Cognitiva do Instituto Max Planck de Pesquisa Psicológica, em Munique. Em 1993, recebeu o Prêmio Leibniz da Comunidade Alemã de Pesquisa.