Na última sexta-feira (25/11), uma tragédia se abateu sobre o Brasil. Na cidade de Aracruz, no estado do Espirito Santo, um jovem invadiu duas escolas (uma pública e outra particular) e, armado, atirou em professores e estudantes. Até o momento, quatro pessoas morreram, e cinco permanecem internadas. O assassino em questão é um jovem de 16 anos, filho de um policial militar, que utilizou armas e o carro de seu pai para cometer o crime.
De acordo com as investigações, o atentado foi planejado por dois anos, uma premeditação que possibilitou que duas escolas fossem atacadas num mesmo dia, pelo mesmo sujeito – embora a polícia ainda não tenha descartado a participação de outras pessoas.
As razões para o crime não estão completamente esclarecidas, mas, no momento do crime, o adolescente tinha estampada em sua roupa uma suástica nazista. Além disso, o pai do assassino teria utilizado suas redes sociais para recomendar e difundir a leitura do livro Minha Luta, de Adolf Hitler.
O caso chocou o país e a opinião pública, pois esse tipo de crime é pouco comum no Brasil. No entanto, a flexibilização do acesso a armas e a ampliação do discurso de ódio que marcaram os últimos quatro anos da nossa história podem, infelizmente, transformar esse tipo tragédia em algo mais frequente em terras brasileiras.
Só que no Brasil, tragédia pouca é bobagem.
Racismo sempre presente
Não bastasse toda a dor e sofrimento que o atentado trouxe e o medo de que essa ação seja o resultado de uma combinação pérfida amplamente defendida pelo governo que está chegando ao fim, temos o racismo ali, sempre presente.
Ao noticiar o crime, o Estado de S. Paulo, um dos maiores e mais respeitados jornais do Brasil, divulgou sua manchete acompanhada por uma imagem de mãos negras empunhando uma arma, como se aquelas mãos fossem as do assassino.
A veiculação causou inúmeras críticas. O autor do crime, que já foi preso, é um rapaz branco e, se isso não bastasse, existe ainda a forte possibilidade das razões do crime terem fundo nazifascista. Mas nem isso parece o suficiente para dissuadir parte importante da mídia e da opinião pública brasileira, que insistem em acreditar e divulgar que, no Brasil, bandido bom é bandido preto.
A relação direta entre a autoria de crimes e pessoas negras é uma das facetas mais perversas e antigas do racismo que estrutura nossa história e nossa sociedade. É preciso lembrar que a Intendência Geral de Polícia da Corte, criada em 1808, foi o órgão que deu origem à Polícia Militar do Brasil, e teve como uma de suas principais atribuições a caça a escravizados foragidos.
Ao longo do século 19, os órgãos de repressão do Estado brasileiro estabeleceram uma presunção de culpa que recaía sobre todas as pessoas negras. Essa perspectiva, baseada no racismo científico, também foi amplamente divulgada por boa parte dos jornais e periódicos oitocentistas, que reafirmavam sistematicamente a suspeição em relação à "gente de cor" do Brasil.
A escravidão foi abolida (1888), a República proclamada (1889) e o novo Estado nacional brasileiro continuou agindo a partir dos pressupostos estabelecidos pela ideologia que fundamentou a colonização, a eugenia e o nazismo. Pretos e pardos continuaram sendo vistos como criminosos em potencial, por serem o que eram: homens pretos e pardos. E, justamente por isso, se mantiveram como o alvo das ações truculentas do Estado e da opinião racista da mídia brasileira.
Privilégio branco
As mãos negras segurando a arma em um caso no qual o criminoso é reconhecidamente um homem branco não foram um lapso da editoria do jornal. Foi o racismo brasileiro funcionando a todo vapor, naturalizando a ideia de que a criminalidade é coisa de preto.
Ainda estamos em novembro, um mês que, nos últimos anos, se consagrou como sendo o momento auge para o debate sobre o racismo no Brasil: o mês da consciência negra. E nem mesmo esse alerta foi suficiente para "conter o deslize" do jornal, um deslize que, vale dizer, encontra eco em grande parte da sociedade brasileira.
As críticas foram muitas e contundentes. E, ao revelar a dimensão do racismo brasileiro, elas também apontam o privilégio dos homens e mulheres brancos que estão à frente dos jornais brasileiros. Um caso exemplar que ressalta a importância de ter pessoas negras em cargos de liderança e poder, para evitar que "lapsos" como esse aconteçam. Porque, infelizmente, ainda vivemos num país que defende (mesmo que inconscientemente) que bandido é sempre preto.
--
Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.